quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Até a notícia cheira mal

Faz hoje (quarta-feira) precisamente uma semana, que os noticiários, da tarde nas rádios, e da noite nas televisões, abriram com a notícia de um acentuado cheiro a gás na cidade de Lisboa, mais concretamente, na zona envolvente à Cidade Universitária, Avenida das Forças Armadas e Avenida 5 de Outubro. No dia seguinte, o Batalhão de Sapadores Bombeiros e a Agencia Portuguesa de Ambiente tranquilizavam os habitantes. A RTP escrevia assim a notícia… «O Regimento de Sapadores Bombeiros assegurou hoje a inexistência de vestígios de explosividade no produto que esta quarta-feira causou um intenso cheiro a gás em vários pontos de Lisboa. De acordo com a mesma fonte, "foram realizadas medições na rede colectora" e procedeu-se à "recolha de amostras para análise do ar pela Agência Portuguesa de Ambiente", não tendo sido detectados "vestígios de explosividade".» Citava depois o documento da Agencia Portuguesa de Ambiente… «O produto analisado pertence a uma classe de compostos que contém enxofre na sua composição molecular não sendo potencialmente perigoso.» No dia seguinte (18 de Janeiro, dois dias depois do acontecimento), o “Correio da Manhã” acrescentava… «O cheiro a gás que anteontem levou à evacuação de pelo menos nove edifícios e ao encerramento de duas estações de metro no centro de Lisboa foi provocado por uma funcionária de limpeza da Faculdade de Farmácia de Lisboa. A funcionária deparou-se com um frasco de um reagente – um composto de enxofre e hidrogénio denominado Tiol – que tinha uma fissura. Apesar de o frasco estar guardado numa câmara frigorífica dentro do laboratório, a senhora sentiu o cheiro a enxofre e resolveu, por sua iniciativa – segundo explicou o Presidente do Conselho Directivo, José Morais, em declarações à RTP – despejar o produto químico no terreno contíguo à faculdade. Segundo José Morais, a referida funcionária “não avisou ninguém porque os responsáveis da faculdade estavam em reunião e ela não os quis incomodar. O professor garante que as autoridades foram avisadas ainda durante a noite de quarta-feira e assegura que se trata de uma situação “inédita” na instituição. O frasco que continha o produto químico acabou por ser encontrado por um funcionário da Galp Energia e foi levado pela Polícia Judiciária para ser analisado. Ontem de manhã, ainda se sentia um forte cheiro a enxofre na zona e três funcionárias do ISCTE – situado a poucos metros da Faculdade de Farmácia – tiveram de receber assistência médica por se terem sentido mal. Uma das funcionárias foi mesmo hospitalizada por sofrer de problemas respiratórios.» Comentário… Os jornalistas não têm de perceber de Química, (ou de qualquer outra ciência) no entanto, para que uma notícia seja correctamente transmitida, sempre que não se têm conhecimentos do assunto, deverão ser ouvidos os peritos que estiverem disponíveis. Parece ter sido o que fez a RTP. Mas, pasme-se, os alegados peritos, ou o eram apenas virtualmente, ou, seguindo a doutrina do “diz que é uma espécie de engenheiro”, mentiram ou no mínimo, omitiram descaradamente. Ponto um - O que significa “um forte cheiro a enxofre”? O enxofre elementar (entenda-se, não ligado a outros átomos) é um pó amarelo, sem cheiro, usado na agricultura para matar certas pragas que atacam as culturas, nomeadamente a vinha e o tomate. Ponto dois – O “porta-voz” da Agência Portuguesa de Ambiente, afirmou que “o produto analisado pertence a uma classe de compostos que contém enxofre na sua composição molecular não sendo potencialmente perigoso.” Se analisaram o produto, pelos vistos fizeram-no, pois afirmaram ser uma molécula contendo átomos de enxofre, coloca-se a pergunta: Qual era? O Presidente do Conselho Executivo da Faculdade de Farmácia, José Morais, disse que se tratava de “um composto de enxofre e hidrogénio denominado Tiol”. Mas tiol é o nome de uma família de compostos orgânicos contendo o grupo SH (S de enxofre e H de hidrogénio) e não o nome de um único, repete-se portanto a pergunta, qual era o composto? Ponto três – A ser verdadeira (e tudo indica que sim), a versão popular do forte cheiro a gás e considerando as “meias informações” dos técnicos, penso que se tratava de Etanotiol (CH3CH2SH), composto que se adiciona em pequenas quantidades ao gás de cidade (mistura de propano e butano) para lhe dar cheiro e assim se poderem detectar facilmente quaisquer fugas. Quando puro, como parece ser o caso, é um composto muito volátil (cujo ponto de ebulição ronda os 35 ºC), de odor extremamente desagradável, muito inflamável e tóxico por inalação (daí a possível hospitalização de uma das funcionárias). Ponto quatro – Vários órgãos de comunicação social falaram de um frasco com 100 ml (200 ml, segundo outras fontes). Pela área afectada, se se tratava de Etanotiol, terão sido derramados na via pública, alguns litros (e não centilitros) do composto. Como é possível que alguém tenha pegado em tal quantidade de uma substância destas e decidido derramá-la num terreno baldio, sem ordens expressas de um superior, se nos rótulos dos frascos deste produto são bem visíveis os símbolos, e indicações, “Muito Inflamável”, “Tóxico” e “Nocivo para o Ambiente”, e qualquer funcionário de uma faculdade como esta, tem formação mais que suficiente para ler e interpretar estes rótulos? Em resumo, passou uma semana sobre o caso, não acham que já é tempo de nos informarem sobre o que realmente se passou?
Apache, Janeiro de 2007

6 comentários:

Diogo disse...

É por estas que eu vejo cada vez menos telejornais (ou leio jornais). Comprova-se que não existe qualquer cuidado em esclarecer convenientemente o que quer que seja. Se isto é assim com um frasco de Etanotiol, o que não será com «armas de destruição maciça» nalgum país do petróleo?

Um abraço

M@nza disse...

Olá Apache
Tens razão quando dizes que uma parte dos jornalistas, parece não saber o que escreve, ou não apesquisa correctamente, antes de mandar para o editor.
Quanto aos tais funcionários da faculdade que têm formação mais que suficiente para ler e interpretar estes rótulos, devem ter tido formação na tal faculdade do filósofo Socrates. eh eh eh

Cleopatra disse...

É o que eu digo, não é o mesmo que ser jornalista!!................

cris disse...

Aposto que ainda nem sabem que frasco foi aquele... a Isma do filme "Pacha e o Imperador" era bem mais organizada, bolas...

Anda tudo maluco

Apache disse...

Espero que não, Cléo.


"devem ter tido formação na tal faculdade do filósofo" Lol

"Anda tudo maluco." Parece-me uma hipótese admissível, Cris.

redonda disse...

Gostei deste teu post. Um bom exemplo de como o conhecimento (neste caso em química) pode servir para desmontar algumas "notícias".