quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Inutilidades…

“Pela primeira vez desde que fiz 18 anos, não exercerei o direito de voto no próximo domingo. Vou abster-me, num acto pensado que se sustenta na inutilidade do actual modelo de poderes presidenciais e na sua trágica discrepância com a elevação democrática que subjaz à eleição directa e universal do seu titular. Os poderes presidenciais constantes na Constituição constituem uma amálgama de elementos incoerentes sem sombra de identidade própria. Os seus defensores gostam de o nomear com uma expressão assaz reveladora desse insuperável estado de confusão: seria um modelo semi-presidencial misto com pendor parlamentar! Na prática das últimas décadas percebeu-se que este é o lugar público onde se torna mais perceptível a directa relação entre a dimensão do cargo e a daquele que o exerce. Se o seu titular se reduzir a ser um "Presidente do Conselho Fiscal do Formalismo Constitucional", como sucedeu com Cavaco Silva (e com nove anos e meio dos dez de Jorge Sampaio), então não faz qualquer sentido persistir em elegê-lo por sufrágio directo e universal. Nos últimos quinze anos, este País andou sempre para trás. Qualquer que seja a questão nacional (educação, saúde, justiça, economia, finanças, credibilidade das instituições, o estado de depressão colectiva, etc.), Portugal está muito pior. No entanto, segundo grande parte dos nossos constitucionalistas, bem como dos cronistas da corte que julgam fazer análise política, nenhuma responsabilidade pode ser assacada aos presidentes da República (PR). Esta tentativa forçada de desculpabilização é contraproducente - acaba por desvendar que, afinal, o PR não faz qualquer diferença. Se o PR não influenciou as muitas desgraças que nos têm sucedido, então para que é que serve? É um mero distribuidor de alguns cargos e muitas duvidosas honras? Consistirá num simples produtor de avisos ou numa espécie de moralista do caos sem força palpável nos destinos colectivos? E será democraticamente adequado sujeitar o País a eleições presidenciais quando a omissão política do PR é um dado esperado e aceite pela exígua minoria que conhece a Constituição? A ideia contemporânea de participação democrática vive da possibilidade de os cidadãos poderem influir efectivamente nas decisões que vão afectar as suas vidas. A democracia não se esgota em eleições - contudo, é nestas que os cidadãos possuem um instrumento activo para poderem agir sobre a realidade política, procurando alterá-la, através do seu voto. Os dois últimos Presidentes primaram pela apatia, ambos justificando-se com o desenho constitucional dos seus poderes. Só que a esmagadora maioria dos eleitores julga que o seu voto, no próximo domingo, tem o dom de eleger alguém que pode determinar mudanças reais no País - o que não é verdade. Apesar de tal não ter estado na mente do legislador constituinte, do ponto de vista democrático as eleições presidenciais são uma autêntica fraude constitucional. Não vou votar porque sei que isso seria um acto inútil e ilusório. E, ainda, porque a abstenção consciente, hoje em dia, é a melhor forma de expressar o repúdio por este sistema em que nos afundámos.”
Carlos Abreu Amorim, no “Diário de Notícias” de hoje

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