Mostrar mensagens com a etiqueta José Manuel Fernandes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta José Manuel Fernandes. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 11 de novembro de 2008

“A razão dos professores e o autismo da ministra” - José Manuel Fernandes

“Não houve muitas notícias na imprensa, na rádio ou na televisão. Até há poucos dias houve mesmo quem duvidasse que os professores realizassem uma nova manifestação. Ou vaticinava-se que esta, a realizar-se, não fosse mais do que um desses desfiles sindicais que o país se habituou a ver para os lados do Ministério da Educação. De repente...
De repente, os professores repetiram ontem um protesto que conseguiu ser maior do que o de Março. Os próprios sindicatos devem ter ficado surpreendidos. Mais: os sindicatos parecem, neste momento, ultrapassados pelos acontecimentos.
Na última semana o PÚBLICO foi recolhendo sinais de que a mobilização para o protesto podia ser enorme, e por isso escrevemos ontem, na capa, «Mobilização total». Hoje sentimos que se está para além desse ponto: a ruptura entre os professores e esta equipa ministerial é total. Uma ruptura como provavelmente nunca aconteceu e que é transversal: manifestaram-se professores de direita e professores de esquerda; recém-chegados à profissão e veteranos; sindicalizados e não sindicalizados; principiantes e professores titulares, professores avaliadores, presidentes de conselhos executivos.Não é possível explicar esta mobilização recorrendo a argumentos como «os professores não querem ser avaliados», «é tudo obra dos sindicatos» ou «não passa de uma reacção corporativa». Mesmo que isso tenha vindo a ser repetido por ministros, Secretários de Estado e porta-vozes, a verdade é que o número de professores que se mobilizou, o número de professores que pediu a reforma antecipada com prejuízo financeiro, as notícias que chegam de todo o país de que o processo está a descarrilar, seriam suficientes para que qualquer equipa ministerial tivesse, ao menos, a humildade de escutar, de tentar perceber por que motivo estão todos - e se não são todos, são quase todos - contra este processo de avaliação do desempenho.
No entanto, o que se está a passar era previsível. Antes da manifestação de Março escrevemos neste espaço que, depois de termos apoiado a Ministra da Educação em muitas medidas impopulares, defendendo há muito a necessidade de avaliar o desempenho das escolas e dos professores, o processo que o ministério estava a montar era kafkiano e iria produzir os efeitos contrários aos desejados. Para chegar a essa conclusão não andámos a ler os comunicados dos sindicatos - tratámos antes de ler a legislação que estava a chegar às escolas. E o ponto central da crítica: imposta de cima para baixo, desrespeitando a autonomia e, sobretudo, a especificidade de cada escola.
Este tipo de visão napoleónica da escola começou a desmoronar-se rapidamente. Basta referir, por exemplo, que o famoso Conselho Científico para a Avaliação dos Professores já vai no seu segundo presidente (o primeiro demitiu-se, e não foi a única baixa registada) e, se acreditarmos no que ontem estava no seu site na Internet, teve a última reunião em Julho, isto é, há quatro meses. Nem entre os mais responsáveis pelo sistema este consegue suscitar confiança.
Mas o pior está a passar-se nas escolas, e nas escolas com os alunos e a qualidade de ensino. O ano lectivo passado, depois do protesto de Março que levou o ministério a suspender o processo, os professores regressaram às escolas e, melhor ou pior, fizeram o que estava ao seu alcance para estarem à altura das exigências da sua profissão.
Só que este ano lectivo a máquina burocrática do ministério regressou com as suas instruções, circulares e ameaças. Os resultados têm sido dramáticos não apenas para a vida dos professores, mas para o normal funcionamento das escolas. Sexta-feira a presidente do conselho executivo da escola pública que, regularmente, fica em primeiro lugar nos rankings disse, em entrevista ao PÚBLICO, como estas normas estão a destruir a sua escola. Ontem relatámos um dia na vida de uma professora avaliadora que trabalha numa escola difícil da Grande Lisboa. Se no ministério alguém lesse jornais, não teria tido de esperar pela manifestação de ontem para perceber até onde vai o mal-estar. Mas deve haver outras prioridades para os lados da 5 de Outubro.
Seriamente ninguém pode ser contra a avaliação de desempenho como condição para a progressão profissional. Mas é intolerável que, dando sinais de crescente teimosia, tente impor um modelo que não funciona, está mal pensado e ainda pior concebido.
E se alguém quisesse realmente avaliar o desempenho dos docentes e das escolas há muito que teria feito algumas coisas simples, todas elas eficazes para promover a qualidade das escolas. Uma delas seria fornecer indicadores sistemáticos e uniformes sobre a evolução dos alunos, o que exigiria provas nacionais realizadas com seriedade. Outra dar mais autonomia às escolas e criar mais mecanismos de interacção com as comunidades locais. Outra ainda ter aprovado um estatuto da carreira docente mais flexível e que permitisse às escolas fazerem ofertas de emprego diferenciadas aos docentes que quisessem motivar para os seus projectos educativos. E, por fim, permitir que as famílias tivessem mais liberdade na escolha das escolas públicas e também das privadas. É possível que muitas dessas medidas tivessem também a oposição de muitos professores, mas dar-lhes-iam melhores oportunidades, tornariam o sistema mais transparente e responsabilizariam mais as famílias. Este sistema está a provocar o efeito contrário e, quando esta ministra passar, pois não é eterna, quem mais terá perdido serão os que menos meios têm para compensar o que as escolas públicas, cercadas e desmotivadas, cada vez lhes dão menos. A isto chama-se promover a injustiça social."
José Manuel Fernandes, no jornal “Público” de que é Director, 9/11/2008

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

"Os números da ministra, os da OCDE e o dia-a-dia da escola"

"Para assinalar a abertura do ano lectivo, o PÚBLICO pediu a 85 professores que dissessem o que iriam fazer para melhorar a escola. Não escolhemos uma amostra científica nem procurámos que fosse representativa, apenas tivemos o cuidado de que fosse aleatória e de não condicionar as respostas. Ora lendo o trabalho que hoje editamos verifica-se que uma grande parte dos professores, talvez a maioria, afirma ou dá a entender que ensinaria melhor se o ministério atrapalhasse menos. E são numerosíssimas as respostas em que se percebe até que ponto chegou a desmotivação de muitos docentes. No entanto, milagrosamente, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues e o primeiro-ministro José Sócrates vieram dizer-nos que tudo corre às mil maravilhas na área da educação. Há mais investimento (?) e conseguiram-se melhores resultados a todos os níveis, sobretudo no sucesso educativo dos alunos. Distribuíram aos jornalistas alguns quadros em abono da sua tese, provando que a percentagem de chumbos diminuiu (mas já não entregaram os números absolutos, para se perceber melhor o universo a que se referiam as percentagens...), e ainda disseram, humildemente, que o êxito se devia aos professores. O que significa que estamos perante um paradoxo: professores que viveram um ano conturbado e de contestação conseguiram o milagre de estarem fortemente motivados para alcançar os objectivos com mais sucesso. Não bate certo. Até porque o inquérito também não encontrou, antes pelo contrário, esses professores altamente motivados. Existindo um paradoxo, tem de existir uma explicação. A primeira seria estarmos perante uma geração de alunos mais motivada e mais interessada na aprendizagem e no sucesso. Seria óptimo se fosse verdadeira, mas é falsa: a maioria dos alunos são os mesmos do ano passado, só que um ano mais velhos. Por esse lado não houve milagres. A segunda explicação é a que foi ontem dada pela generalidade dos professores que se pronunciaram: há instruções para chumbar menos alunos, houve exames mais fáceis e aumentou-se tanto a burocracia que é quase preciso ser um herói para, como se diz em ‘eduquês’, "reter" uma criança ou um adolescente. É muito mais fácil deixá-lo prosseguir, mesmo que mal preparado. Infelizmente é esta a resposta verdadeira, a resposta que foi sendo antecipada ao longo do ano lectivo, quando aqui se escreveu que o Ministério da Educação estava mais preocupado com boas estatísticas do que com um bom sistema de ensino e alunos realmente qualificados. Vale a pena citar, a este propósito, José Pacheco, director do Centro de Investigação em Educação (CIED) da Universidade do Minho, que ontem explicou à agência Lusa que "as elevadas taxas de retenção que se registavam há uns anos eram incomportáveis para qualquer Governo, por causa da comparação dos resultados a nível internacional. Agora reter um aluno é um processo difícil, o que faz com que, estatisticamente, haja uma diminuição significativa dos chumbos". Ou então Jorge Ramos, especialista em História da Educação, que concretizou: "Os níveis de exigência estabelecem-se de acordo com os objectivos esperados por parte do Estado e o objectivo actual é que toda a gente termine o seu percurso escolar. As competências e os objectivos esperados para cada ano de escolaridade passam a ser definidos em função de toda a população de uma determinada faixa etária." Acontece porém que, mesmo utilizando as estatísticas portuguesas, em particular as do Ministério da Educação, a OCDE sempre vai produzindo estudos comparativos que, mesmo condicionados pelos dados enviados de Portugal e não podendo avaliar fenómenos como o criticado "facilitismo", permitem comparações interessantes. Por exemplo: ficámos a saber que Portugal é um dos países da União Europeia onde se dedica menos tempo ao ensino da língua pátria e da Matemática, precisamente as duas cadeiras centrais, básicas, de qualquer currículo escolar; ou que os docentes portugueses de todos os níveis de ensino são os que dão mais horas de aulas e os que mais tempo têm de permanecer nas escolas, razão por que é provável que sejam dos que têm menos tempo para preparar as aulas e dos que mais horas gastam a preencher papéis e a desempenhar funções burocráticas. Fazendo o cruzamento das estatísticas "embrulhadas" para eleitor ver com as da OCDE e acrescentando a leitura que os especialistas fazem do "milagre" do sucesso, só se pode chegar a uma conclusão: depois da fase da massificação do ensino que, naturalmente, se traduziu numa perda de qualidade por passarem a aceder ao sistema alunos com uma base familiar mais frágil, aquilo que devia ser a fase da qualificação e da exigência está ser substituído por uma mistificação que procura transformar o insucesso em sucesso, fingindo que, assim, se ganhou qualidade. Num país onde os níveis formais de qualificação da população continuam ao nível dos da Turquia (só 28 por cento da população entre os 25 e os 64 anos completou o ensino secundário), este teatro político não é uma comédia, é uma tragédia que pagaremos muito caro no futuro."
José Manuel Fernandes, no “Público” de 10 de Setembro de 2008

domingo, 31 de agosto de 2008

E se metessem o chip naquele sítio…

A propósito da promulgação da lei que permite a introdução (para breve) do chip nas matrículas dos automóveis, que é assim uma espécie de pulseira electrónica para gente de brandos costumes, lembrei-me deste artigo de José Manuel Fernandes, no “Público” de 21 de Julho de 2008.
“Acordo com o toque do telemóvel. Num computador algures, fica registado o número de telefone que me ligou e a zona em que estava quando o atendi. Levanto-me, tomo o pequeno-almoço e passo por uma caixa multibanco. Noutro computador algures ficam registadas todas as operações que efectuei. E também o lugar exacto onde estava. Entro no automóvel e, a caminho do trabalho, sigo pela auto-estrada. Como tenho Via Verde, um outro computador regista a minha passagem e arquiva-a. Ao longo do dia, todos os telefonemas que fizer ou receber no meu telemóvel continuarão a ficar registados num computador, e o meu operador tem ordens para guardar os registos durante um período determinado para eventual utilização pelas autoridades. O mesmo vai suceder com todas as vezes que utilizar um dos meus cartões de débito ou de crédito. Ou quando estacionar num parque onde também exista Via Verde. No meu local de trabalho, como em quase todos, há câmaras de vigilância que não estão apontadas a nenhum posto de trabalho, mas onde ficam registadas todas as vezes que entro e saio do edifício. Pelo menos. Se, por acaso, me dirigir a um centro comercial, serei por certo filmado por mais uma mão cheia de câmaras, e os seus registos também ficarão guardados durante pelo menos 30 dias. Virtualmente, já é possível a uma qualquer polícia reconstituir tudo o que fiz ao longo do dia. Mesmo sem ter de recorrer a escutas nem colocar um agente a seguir-me. Apenas cruzando informação presente em computadores a que pode ter acesso quando desejar, bastando-lhe cumprir um mínimo de exigências legais. Mas mesmo tudo isto não chega ao nosso Estado. Num ousado gesto de inovação por certo integrado no "choque tecnológico" (suponho, pois já ninguém fala dele), agora os burocratas do Terreiro do Paço querem que a matrícula do meu carro - de todos os carros - tenha um chip. E se o Governo pensou na genial iniciativa, logo a acéfala maioria PS na Assembleia se prontificou para a votar sem se questionar um minuto sequer sobre o significado do que estava a fazer. A partir do próximo ano, o nosso querido Estado, se a lei passar o teste da constitucionalidade, pode passar a saber por onde anda o meu carro, a que velocidade se deslocou entre dois "sensores", onde o deixei estacionado, quem nele viajava (basta cruzar as informações do chip da matrícula com as dos telemóveis) e uma quantidade de outras coisas que fazem parte da intimidade de cada cidadão. Faltará passar do chip na matrícula para o chip subcutâneo, altura em que o Estado me poderá prestar, com a maior eficiência, uma enorme quantidade de serviços com enormes vantagens económicas. No chip subcutâneo pode estar tudo: os meus dados de identidade, a minha história civil, todos os registos médicos, os meus dados fiscais, porventura uma boa parte do que estiver em todas as outras bases de dados. E nem será muito difícil desenvolver a geringonça, pois já há chips para cães. Exactamente: para cães. E para outros animais domésticos ou de criação. Porquê? Porque esses animais têm um dono. Não são livres nem têm o livre arbítrio que associamos aos seres humanos. Mas, pelo caminho que as coisas estão a levar, não tarda nada que achemos natural que o que muitos apresentam como a sombra protectora do Estado se transforme num ambiente de absoluta claustrofobia que viola o mais central dos direitos humanos: o da livre escolha do que faz ou não faz na sua esfera privada, ou mesmo íntima, sem ter de sentir que, sob formas mais sofisticadas dos que as imaginadas por Aldous Huxley no seu Admirável Mundo Novo ou por George Orwell em O Triunfo dos Porcos ou 1984, vivemos sob vigilância permanente ou somos constantemente condicionados. Num país onde o valor da liberdade fosse minimamente valorizado, o chip nas matrículas teria levantado um sobressalto cívico. Em Portugal, suscitou pouco mais do que um encolher de ombros. Tal como o famoso "cartão único", que nos foi vendido como sendo inócuo mas que parece que vai ter um efeito perverso não anunciado: quando estiver em vigor, ninguém mais vai ter a liberdade de não se recensear para votar, pois o recenseamento eleitoral passará a ser automático. Parece pouco importante, mas é só um exemplo de como se podem embrulhar num laçarote de boas intenções outras intenções menos boas e não anunciadas. Nem sequer nas letras pequenas dos contratos.”
Apache, Agosto de 2008