quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

"Estes Natais sinistros..."

"Já ninguém se recorda de Deus no Natal. Há tanto barulho de cornetas, tantos fogos de artifício, tantas grinaldas coloridas, tantos perus inocentes degolados e tantas angústias de dinheiro pelos gastos que ultrapassam a nossa real possibilidade, que me pergunto, se a alguém resta um instante para perceber que tamanho alvoroço é para celebrar o aniversário de uma criança que nasceu há 2000 anos numa miserável estrebaria, a pouca distância do local onde havia nascido, uns mil anos antes, o rei David. Novecentos e cinquenta e quatro milhões de cristãos crêem que essa criança é Deus encarnado, mas muitos celebram-no como se na realidade não o cressem. Celebram-no além disso muitos milhões que nele nunca creram, mas agrada-lhes a farra e ainda muitos outros que estão dispostos a virar o mundo do avesso para que ninguém continue a acreditar nele. Seria interessante averiguar quantos deles crêem também, do fundo da sua alma, que o Natal de agora é uma festa abominável, mas não se atrevem a dizê-lo por um preconceito que já não é religioso mas social.
O mais grave de tudo é o desastre cultural que estes Natais pervertidos estão a causar na América Latina. Antes, quando só tínhamos costumes herdados da Espanha, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. O menino Deus era maior que a vaca, as casinhas empoleiradas nas colinas eram menores que a virgem; mas ninguém dava atenção a estes anacronismos: a paisagem de Belém era completada com um comboio de corda, com um pato de pelúcia, maior do que um leão, nadando no espelho de uma sala; ou com um agente de trânsito a dirigir um rebanho de ovelhas numa esquina de Jerusalém. Acima de tudo punha-se uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro e, um raio de seda amarela, para indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. O resultado era bem mais feio, mas parecia-se connosco, sendo portanto melhor do que tantos quadros primitivos mal copiados do aduaneiro Rousseau.
A mistificação começou com o costume de que os brinquedos não fossem trazidos pelos Reis Magos – como sucede, com toda a razão, em Espanha – e sim pelo menino Deus. Nós, crianças, deitávamo-nos mais cedo para que as prendas não demorassem, e éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos. Eu não tinha mais do que cinco anos quando alguém em minha casa decidiu que já era tempo de revelar-me a verdade. Foi uma desilusão, não só porque eu acreditava mesmo que era o menino Deus que trazia os brinquedos, mas também porque queria continuar a acreditar. Aliás, seguindo a lógica de um adulto, pensei então que os outros mistérios católicos também eram inventados pelos pais para entreter as crianças, e fiquei-me no limbo. Naquele dia – como diziam os mestres jesuítas na escola primária – perdi a inocência, pois descobri que nem sequer as crianças eram trazidas de Paris pelas cegonhas, o que é algo que, ainda assim, gostaria de continuar a acreditar para pensar mais no amor e menos na pílula.
Tudo isto mudou nos últimos trinta anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é ao mesmo tempo uma devastadora agressão cultural. O Deus menino foi destronado pelo “Santa Claus” dos “gringos” e dos ingleses, que é o mesmo Pai Natal dos franceses, de quem todos conhecemos demasiado. Chegou-nos com tudo: desde o trenó puxado por renas, ao abeto carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve. Na realidade, este usurpador com nariz de taberneiro não é outro senão o bom São Nicolau, um santo a quem quero muito, por ser da devoção do meu avô coronel, mas que nada tem a ver com o Natal, e muito menos com a "Bela Noite" tropical da América Latina. Segundo a lenda nórdica, São Nicolau ressuscitou várias crianças em idade escolar, que um urso havia despedaçado na neve e, por isso, proclamaram-no patrono das crianças. Mas a sua festa celebra-se a 6 de Dezembro e não a 25. A lenda tornou-se institucional nas províncias germânicas do Norte em finais do século XVIII, conjuntamente com a árvore dos brinquedos, e há pouco mais de cem anos, o costume estendeu-se à Grã-Bretanha e à França. A seguir passou para os Estados Unidos, e estes exportaram-no para a América Latina, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as velas coloridas, o peru recheado e estes quinze dias de consumismo frenético ao qual muito poucos se atrevem a escapar. Contudo, talvez o mais sinistro destes Natais de consumo seja a estética miserável que trouxeram consigo: esses postais de natal indigentes, esses cordões de luzinhas de cores, esses sininhos de vidro, esses penduricalhos nas janelas e nas varandas, essas canções de atrasados mentais que são os cânticos traduzidos do inglês; e outra tanta estupidez gloriosa para a qual não valia sequer a pena ter inventado a electricidade.
Tudo isto, em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite infernal em que as crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados que se enganam na porta à procura de sítio para desaguar, ou a perseguir a esposa de outro enquanto este dorme na sala. Mentira: não é uma noite de paz e amor, antes o contrário. É a ocasião solene de toda aquela gente que não queremos. A oportunidade providencial de cumprir os adiados compromissos indesejáveis: o convite ao pobre cego que mais ninguém convida, à prima Isabel que ficou viúva há quinze anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a mostrar em público. É a alegria por decreto, o carinho por lástima, o momento de presentear porque nos presenteiam, e de chorar em público sem ter de dar explicações. É a hora dos convidados beberem tudo o que sobrou do Natal anterior: o creme de menta, o licor de chocolate, o vinho de banana. Não é raro, antes sucede amiúde, a festa terminar aos tiros. Também não será raro, que as crianças – ao verem tantas atrocidades – acabem por acreditar que o menino Jesus não nasceu em Belém, mas sim nos Estados Unidos."
(escrito na Noite de Natal de 2006 por Gabriel García Márquez)
Uma visão diferente de um Natal longínquo e talvez tão próximo.
[Tradução minha] Apache, Dezembro de 2006

4 comentários:

Cleopatra disse...

Não sei que lhe responda.

disse...

Passei por aqui. Gostei do blog e deste post.Que o menino Jesus nasça em cada um de nós.
Feliz 2007

Cleopatra disse...

Os Indios não festejam o Natyal , eu sei.
Mas há um grande Deus....à sua espera lá no Cleopatramoon.. O DFEus do sorriso e do calor humano.
Apareça. Tenho saudades suas!!

Ou fugiu com as renas também?

Apache disse...

Olá Cléo, nem todas as leituras nos suscitam comentários.
Gosto de saber que tem passado por aqui.
Uma perninha de rena assada até ía bem... estou a precisar de fazer dieta mas ando com apetite de Obélix...

Olá Te, obrigado pela visita!
Ainda lhe digo mais... Que o menino Jesus nasça em cada um de nós.
Beijinho.