De brinde, vive-se com um pé fora da pocilga, pronto para uma fuga
definitiva e, por enquanto, para escapadelas provisórias. Combustível, compro
em Espanha. Víveres nos supermercados, idem. Roupa, ibidem. Esplanadas para
jantar fora nas noites mornas de Verão, há as de Zamora e Salamanca. Irrita-me
um bocadinho que demasiados espanhóis ainda cumpram a recomendação do farrapo
no nariz, mas não existem imposições e, ao contrário do que sucede em Lisboa ou
no Porto, as vantagens sobrepõem-se largamente aos enxovalhos. Claro que ambos
os países têm governos marxistas. Porém, o lado de lá possui tribunais e as
regiões possuem a proverbial autonomia, pelo que Castela não prevê decretar
“passes sanitários” ao bom velho estilo soviético.
Portugal ficou irrespirável. Quer dizer, irrespirável é o
Nordeste, cujas temperaturas resolveram roçar os 40 graus nos últimos dias.
Falo daquela respiração metafórica, própria dos lugares decentes. Hoje,
Portugal não é decente. Nunca fui patriota, talvez por ser compatriota de muita
gente que acho abominável. O que antes eu desconhecia é a desmesurada
quantidade de gente abominável que partilha comigo a nacionalidade. A Covid
ajudou à descoberta. A Covid não tem culpa, coitada: apenas serviu de pretexto
para que um partido e um regime subordinado a um partido estendessem o controlo
económico, social e mental a níveis que não pude, ou soube, prever.
De resto, o pior nem são os apetites totalitários de socialistas –
perdoem a redundância – primários e corruptos. O pior é a docilidade com que o
povo acolhe os apetites. Acolhe, aplaude e, não raramente, incentiva. Nos
intervalos, denuncia os prevaricadores. Antes que me venham com equivalências
ao “estrangeiro”, lembro por exemplo que o discurso de há um mês, em que
Macron, o Pirolito, prometia o “apartheid” formal das pessoas não vacinadas ou
que não ostentassem o “certificado” (não são sinónimos: sou vacinado e não
quero certificado algum, que aliás jamais mostraria a estranhos) levou centenas
de milhares a protestarem nas ruas. Os protestos têm sido recorrentes ao longo
deste ano e meio na generalidade do Ocidente civilizado, mesmo que poucos
Estados aplicassem tantas restrições, cometessem tantas ilegalidades e
provocassem tantas misérias quanto o português. Perante isto, o português, o
cidadão não o Estado, não deu um pio.
Deve ser uma insuficiência anatómica: o português não pia. Nos
tempos que correm, nem sequer resmunga inconsequentemente como era tradição.
Lembram-se? Confrontado com o buraco à porta de casa, por remendar há seis
meses, o português ensaiava uns insultos para dirigir ao presidente da Junta.
Seis minutos depois, cruzava-se com o dito autarca e agravava a hérnia com
salamaleques. O buraco não surgia na conversa. Agora nem isso: o português
salta directamente para o elogio do buraco. Em casos limites de subserviência,
salta directamente para o buraco, a fim de provar a respectiva utilidade e os
insuperáveis méritos do autarca.
Repito: o problema não é a Covid. É a reacção dos portugueses à
avalanche ditatorial que a Covid suscitou. Desde o início desta história que o
Governo ordenou as mais absurdas, contraditórias e humilhantes coisas para,
dizem, “combater” a Covid. O português acatou todas. E só protesta quando as
julga insuficientes. O desagrado dos nativos não é com a trela curta: é com a
trela não ser curta o bastante. Poderíamos explicar este comportamento com o
medo do vírus, que inclina os homens (e as senhoras) para a irracionalidade. A
explicação seria fraquinha. A obediência cega não se nota exclusivamente nas
matérias da saúde. O drama nacional não é a hipocondria. É a aversão à
liberdade.
Numa curiosa adaptação colectiva da Síndrome de Estocolmo, o pavor
de serem livres é o que justifica a patológica simpatia dos portugueses pelas
quadrilhas que os oprimem. Não admira que livres sejam as quadrilhas. Livres de
encarcerar os portugueses, livres de os arruinar, livres de os gozar, livres de
os roubar, livres de os atropelar em sentido figurado e literal. Salvo
excepções, o pessoal gosta. Salvo excepções, eu não gosto do pessoal. Não gosto
e não percebo. Da vacinação de crianças contra uma doença de que não padecem à
crença de que a vacina não permite eliminar nenhuma das “medidas” alucinadas em
vigor, actualmente quase tudo o que é português me é estranho.
Em suma, eis a razão porque permanecerei sem data de retorno neste
pedaço de território remoto e esquecido: porque é a maneira logisticamente
menos complicada de não me sentir parte do desfile de patologias a que Portugal
desceu. É possível que a minha decisão não adiante muito e que, conforme
afirmava uma personagem do folclore lisboeta, somente transmita uma falsa
sensação de segurança. Ainda assim, sou capaz de preferir a segurança ilusória
à repressão certa, a distância voluntária à proximidade de malucos, a vida ao
medo.”
Alberto Gonçalves, no “Observador”