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sábado, 21 de setembro de 2013

“Uma Constituição madrasta e madraça”


“Aconteceu esta semana, na praia, mesmo à minha frente. Um desempregado estava a nadar e foi apanhado por uma onda. Começou a gritar por auxílio mas nenhum dos outros banhistas o acudiu, fosse por medo ou por desejo de contribuir para a diminuição dos números do desemprego (era o meu caso, pois sou ao mesmo tempo corajoso e patriota). Foi então que o artigo 227 da Constituição da República Portuguesa se lançou ao mar. Parecia um polvo, a nadar vigorosamente com as 22 alíneas do seu ponto número 1. Puxou o homem para a margem e reanimou-o - para surpresa de todos, não só porque nunca tínhamos visto a Constituição fazer fosse o que fosse pelos desempregados, mas também porque não esperávamos que a iniciativa partisse do artigo consagrado aos poderes das regiões autónomas.

O leitor mais perspicaz já estará desconfiado de que o que acabo de relatar talvez seja ligeiramente fantasioso. Tem razão. Havia um desempregado a afogar-se, de facto, mas não foi a Constituição que o salvou, como é evidente. Foi o programa do Governo, o que, aliás, não surpreende. O programa do Governo fez mais pelos desempregados em dois anos do que a Constituição em 37. Ou talvez seja abusivo dizer que o programa de Governo fez muito pelos desempregados. É mais correcto dizer que fez muitos desempregados. Mas é quase a mesma coisa.

O fundamental é reconhecer que Passos Coelho tem razão: a Constituição nunca fez nada pelos desempregados. São 296 artigos e mais um preâmbulo de pura preguiça. É uma Constituição que não cria, não inova, não pratica o empreendedorismo. Não faz sequer pequenos biscates, nem tarefas domésticas. A Constituição nunca me lavou a loiça, nem me fez a cama. Embora, diga-se, pareça muito empenhada em fazer a cama ao primeiro-ministro.

Eu não sou constitucionalista, mas admito que Passos Coelho saiba do que fala. A Constituição foi aprovada com os votos favoráveis do PSD. Jorge Miranda, considerado o pai da Constituição (e, sem desprimor para Bacelar Gouveia, também o único constitucionalista português que parece ter sido desenhado pelo autor dos Simpsons), era deputado à constituinte pelo PSD. E todas as revisões constitucionais foram aprovadas com os votos favoráveis do PSD. Na qualidade de presidente do PSD, é natural que Passos Coelho conheça bem o tipo de texto que o seu partido concebe e aprova para melhorar a vida dos desempregados.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de 5 de Setembro

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Comentando comentadores…

“Portugal é (deixem-me só abrir um parêntesis para comentar este meu comentário. Sinto que estou em desvantagem, nisto de comentar. Bem sei que, todas as semanas, faço aqui comentários, mas tenho vontade de ir um pouco mais além e começar a comentar o que vou comentando. Se há quem possa fazer e depois comentar, como José Sócrates, a mim, que só comento, devia ser permitido comentar os comentários que vou fazendo. Toda a gente tem comentado coisas, em Portugal (e isto é, no fundo, um parêntesis ao parêntesis, no qual pretendo comentar o comentário que fiz ao meu primeiro comentário), embora sejam comentários de natureza diferente. Sócrates, logo para começar, vai fazer comentários, assunto que muitos comentadores já comentaram nos seus espaços de comentário. Uns comentaram favoravelmente, outros comentaram desfavoravelmente, e outros preferiram não comentar até que Sócrates comece a fazer os comentários propriamente ditos. Eu assisti a tudo isto e disse para mim: "sem comentários..." (porque em geral não gosto de dar demasiada confiança a mim mesmo), mas talvez seja altura de estruturar um comentário a todos estes comentários. Em primeiro lugar, gostaria de apontar uma curiosa simetria. O Sócrates do presente terá agora muitas oportunidades para comentar o Sócrates do passado; e o Passos Coelho do passado parece apostado em comentar o Passos Coelho do presente. Ainda esta semana se voltou a recordar um comentário antigo de Passos Coelho: "Não podemos permitir que todos aqueles que estão nas empresas privadas ou que estão no Estado fixem objectivos e não os cumpram. Sempre que se falham os objectivos, sempre que a execução do Orçamento derrapa, sempre que arranjamos buracos financeiros onde devíamos estar a criar excedentes de poupança, aquilo que se passa é que há mais pessoas que vão para o desemprego e a economia afunda-se. (...) Se nós temos um Orçamento e não o cumprimos, se dissemos que a despesa devia ser de 100 e ela foi de 300, aqueles que são responsáveis pelo resvalar da despesa também têm de ser civil e criminalmente responsáveis pelos seus actos e pelas suas acções. (...) Quem impõe tantos sacrifícios às pessoas e não cumpre, merece ou não merece ser responsabilizado civil e criminalmente pelos seus actos?" São palavras do Passos Coelho do passado, dirigidas ao Sócrates do passado, mas que poderiam aplicar-se ao Passos Coelho do presente. O Passos Coelho do passado é um comentador tão bom que comenta o Governo dos outros e o dele na mesma leva - sendo que o dele não existia ainda. Por outro lado, o Sócrates do presente poderá ser muito útil a explicar as acções do Sócrates do passado. Sobretudo aquelas que até hoje parecem pertencer ao domínio do inexplicável. Se o próprio, ainda para mais munido de um curso de filosofia, não conseguir explicá-las, ninguém consegue. O Passos Coelho do passado e o Sócrates do presente têm tudo para ser excelentes comentadores. Infelizmente, o Passos Coelho do presente e o Sócrates do passado são primeiros-ministros muito maus. O que perdemos como cidadãos, ganhamos como espectadores) muito lindo.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da semana passada.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Carta a um desempregado…

“Caro desempregado,

Em nome de Portugal, gostaria de agradecer o teu contributo para o sucesso económico do nosso país. Portugal tem tido um desempenho exemplar, e o ajustamento está a ser muito bem-sucedido, o que não seria possível sem a tua presença permanente na fila para o centro de emprego. Está a ser feito um enorme esforço para que Portugal recupere a confiança dos mercados e, pelos vistos, os mercados só confiam em Portugal se tu não puderes trabalhar. O teu desemprego, embora possa ser ligeiramente desagradável para ti, é medicinal para a nossa economia. Os investidores não apostam no nosso país se souberem que tu arranjaste emprego. Preferem emprestar dinheiro a pessoas desempregadas.
Antigamente, estávamos todos a viver acima das nossas possibilidades. Agora estamos só a viver, o que aparentemente continua a estar acima das nossas possibilidades. Começamos a perceber que as nossas necessidades estão acima das nossas possibilidades. A tua necessidade de arranjar um emprego está muito acima das tuas possibilidades. É possível que a tua necessidade de comer também esteja. Tens de pagar impostos acima das tuas possibilidades para poderes viver abaixo das tuas necessidades. Viver mal é caríssimo.
Não estás sozinho. O governo prepara-se para propor rescisões amigáveis a milhares de funcionários públicos. Vais ter companhia. Segundo o primeiro-ministro, as rescisões não são despedimentos, são janelas de oportunidade. O melhor é agasalhares-te bem, porque o governo tem aberto tantas janelas de oportunidade que se torna difícil evitar as correntes de ar de oportunidade. Há quem sinta a tentação de se abeirar de uma destas janelas de oportunidade e de se atirar cá para baixo. É mal pensado. Temos uma dívida enorme para pagar, e a melhor maneira de conseguir pagá-la é impedir que um quinto dos trabalhadores possa produzir. Aceita a tua função neste processo e não esperneies.
Tem calma. E não te preocupes. O teu desemprego está dentro das previsões do governo. Que diabo, isso tem de te tranquilizar de algum modo. Felizmente, a tua miséria não apanhou ninguém de surpresa, o que é excelente. A miséria previsível é a preferida de toda a gente. Repara como o governo te preparou para a crise. Se acontecer a Portugal o mesmo que ao Chipre, é deixá-los ir à tua conta bancária confiscar uma parcela dos teus depósitos. Já não tens lá nada para ser confiscado. Podes ficar tranquilo. E não tens nada que agradecer.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” desta semana

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

“Meus caros Portugiesisch”

"Carta de Angela Merkel aos portugueses"


“Permitam-me que comece por esclarecer que, quando digo "meus caros", meço bem as palavras. De facto, vocês são cada vez mais meus, e continuam a ser bastante caros. Está em curso um processo destinado a tornar-vos mais baratuchos, mas permanecem demasiado dispendiosos para o meu gosto. Creio não estar a ser sexista quando digo que todas as senhoras apreciam um bom saldo, e por isso defendo que as reduções de salário que a austeridade vos está a impor podem e devem ir um pouco mais longe. A Europa precisa de portugueses com 70% de desconto. Duas palavras: liquidação total. Quero dizer-vos que recebi com muito agrado as vossas várias cartas abertas. Confesso que achei a maior parte delas pouco macias e absorventes. Sem desprimor para as que tiveram a gentileza de me enviar, prefiro cartas impressas em folha dupla aromatizada. Fica a sugestão, para a nossa correspondência futura. Também assisti, com muito interesse, ao vídeo que prepararam para nós. Estava muito bem feito e constitui mais um motivo de orgulho para os portugueses porque, na Alemanha, são raros os alunos do 8.º ano que conseguem fazer trabalhos de grupo tão bons. Fiquei surpreendida com as informações contidas no filme. Não sabia que os portugueses trabalhavam mais horas, tinham menos férias e se reformavam mais tarde do que os alemães. Qual é a vossa desculpa, então, para viverem muito pior do que nós? Tenho a certeza de que o problema não está nos vossos dirigentes. Todos os que conheço levam muito a sério a missão de servir. (…)”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão”

domingo, 6 de maio de 2012

Esbulho à portuguesa

“Primeiro, Vítor Gaspar tirou dinheiro aos trabalhadores. Depois, tirou aos reformados. A seguir, tirou aos consumidores em geral. Agora, tirou ao ministro da Economia. Ora até que enfim, uma medida justa. Creio que o Ministro das Finanças encontrou finalmente um rumo: confiscar verbas aos colegas de Governo. Se Vítor Gaspar também tivesse tomado conta do orçamento de Miguel Relvas, talvez tivéssemos poupado aqueles 12 mil euros que o ministro-adjunto gastou a imprimir 100 exemplares do programa do Governo.
O modo como Gaspar se apoderou dos dinheiros do QREN, que eram até aí responsabilidade do Álvaro, envergonha o povo português. Todos nos lembramos do escabeche que os trabalhadores fizeram por terem ficado sem os subsídios de férias e de Natal, no valor de meia dúzia de tostões. Já o Álvaro fica sem 2,5 mil milhões de euros e limita-se a amuar um bocadinho. Não organizou manifestações, não pintou cartazes, não gritou palavras de ordem. Por razões patrióticas, não se permitiu mais do que um ligeiro melindre. É verdade que o Álvaro tem algum traquejo nisto de ser espoliado, uma vez que Paulo Portas já lhe tinha tirado a diplomacia económica, Miguel Relvas tinha-lhe ficado com o emprego jovem e António Borges tinha-lhe abarbatado as privatizações e as PPP. Mas, ainda assim, continua a ser notável a dignidade com que ele se deixa esbulhar. Sobretudo porque se percebe muito bem o destino que aguarda o Álvaro: os outros ministros têm um orçamento, o da Economia terá uma mesada. Todos os meses, Vítor Gaspar entregará ao Álvaro uma pequena soma, com a indicação de não gastar tudo em guloseimas. É mais uma medida de contenção de despesas e racionalização de custos: não tendo Portugal uma economia, acaba por não se justificar que tenha um Ministério da Economia. É interessante constatar que a única economia que funciona bem em Portugal é a economia paralela - curiosamente, aquela que os economistas não definem nem programam. (…)”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de 15 de Março de 2012

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A “socratização” do país (2)

«"Há um limite para os sacrifícios que se podem exigir aos portugueses."
Pedro Passos Coelho, 23 de Março de 2011
"E eu vou descobrir qual é."
Pedro Passos Coelho, 17 de Outubro de 2011
Ufa! Que sorte. Portugal livrou-se de um primeiro-ministro que dava o dito por não dito, faltava às promessas e impunha sucessivas medidas de austeridade, cada uma mais dura que a anterior. É bom olhar para trás, recordar esses tempos longínquos e suspirar de alívio. Para o substituir, os portugueses escolheram um primeiro-ministro que dá o dito por não dito, falta às promessas e impõe sucessivas medidas de austeridade, cada uma mais dura que a anterior. Trata-se de um conceito de governação tão diferente que, por vezes, parece que estamos a viver num país novo. Quem vive em democracia tem de estar preparado para estas mudanças radicais. Sócrates usava, normalmente, gravatas de tom azul, enquanto Passos Coelho prefere os verdes e os ocres. No entanto, depois de um período de adaptação, os portugueses habituaram-se rapidamente à principal mudança política das duas legislaturas. Em abono da verdade, deve dizer-se que o povo português, embora seja dado a escolhas muito diferentes, de eleição para eleição, tem uma notável capacidade de se adaptar à nova conjuntura política. Repare-se, a título de exemplo, no que acontece com o estilo de Vítor Gaspar, e no modo como os portugueses o aceitaram sem pestanejar - até porque se torna bem difícil pestanejar quando se ouve o ministro das Finanças. Vítor Gaspar tem, como é óbvio, aptidões em várias áreas do saber, embora nenhuma delas seja, ao que parece, a economia ou as finanças. Trata-se de um homem evidentemente versado em hipnotismo e encantamento de serpentes. Cinco minutos a ouvir Vítor Gaspar e o contribuinte começa a sentir-se com sono, muito sono. É nessa altura que percebe que a carteira começa a sair-lhe do bolso, ao som da voz encantatória do ministro. Seduzida pelo magnetismo animal de Gaspar, a carteira abandona o nosso bolso e dança até ao Ministério das Finanças, onde deposita os subsídios de férias e de Natal. Depois, regressa à nossa algibeira, para reabastecer. Gaspar, o encantador de carteiras, já demonstrou ter capacidade para fazer este truque todos os anos. Mas o povo, sempre pérfido, prepara-lhe uma partida cruel: a tendência maldosa do trabalhador português para o desemprego e o trabalho precário levará a que, em breve, não sobre quase ninguém a beneficiar de 13º mês. Lá terá o governo de nos levar o décimo segundo.»
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada semana

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Do acordo “horto-gráfico”… (3)

«Estou a ficar velho, mas a culpa não é minha. O corpo cria poucos cabelos brancos, ainda menos rugas e quase nenhuma pança, e a mente consegue manter-se imatura sem esforço nenhum. Estou a ficar velho por causa do acordo ortográfico. Aos 37 anos, sou um daqueles velhinhos que teimam em escrever "pharmácia" porque no tempo deles era assim. Bem sei que é cedo demais para estas teimosias, mas resisti até onde pude. Eu tentei não ser reaccionário. Não tentei com muita força, mas tentei. Continuei a escrever como sempre, mas os revisores da Visão tinham depois o trabalho de corrigir o texto de acordo com a nova ortografia. Vou pedir-lhes que deixem de o fazer. Eu sou do tempo em que se escrevia "recepção". Não adianta fingir que sou do tempo em que se escreve "receção" para nos aproximarmos dos brasileiros - que, curiosamente, vão continuar a escrever "recepção".
O leitor quer saber porque é que este acordo ortográfico é absurdo, do ponto de vista linguístico? Então leia um linguista, que já vários se pronunciaram sobre isso. Comigo não conta para erudição, como sabe. Eu li os linguistas, mas quem me convenceu a ser contra o acordo foi a minha avó - que só tinha a terceira classe. "Ui, vem aí digressão biográfica", pensa o leitor. "E mete avós pouco instruídas, que acabam sempre por ser as mais sábias", continua, já um tanto impertinentemente. Tenha calma, não é uma enfadonha história de sabedoria anciã. É uma enfadonha história de amor ancião. Nos anos decisivos da minha vida, passei muito tempo em casa da minha avó, que não era, digamos, uma pessoa exuberantemente afectuosa. Não era dada a beijos e abraços. Sucede que, talvez por isso, eu também não sou uma pessoa exuberantemente afectuosa. Também não sou dado a beijos e abraços. Quando quero explicar a uma pessoa que gosto dela, tenho de recorrer a outros estratagemas. A minha avó cozinhava. Ou esperava por mim à janela. Eu digo coisas. Deu-me para isto. Faço tudo o que é importante com palavras, porque não sei fazer doutra maneira. Acho que foi isso que me atraiu na actividade de fazer rir as pessoas: trata-se de provocar uma convulsão física nos outros - mas sem lhes tocar. O Marquês de Sade gabava-se de produzir este e aquele efeito nas senhoras. Sim, mas a tocar também eu. Gostava de ver o sr. Sade fazer com que alguém se contorcesse sem contacto físico.
Dito isto, eu estou preparado para que as palavras se alterem, para que a língua mude. Em português, temos a palavra "feitiço". Os franceses, que não podem ver nada, levaram-na e transformaram-na na palavra "fetiche" (quem mo disse foi o professor Rodrigues Lapa). Nós voltámos a ir buscá-la, e agora usamos feitiço para umas coisas e fetiche para outras. Portanto, a língua mudou e mudou-nos. Ter fetiches é diferente (e mais compensador) do que ter feitiços. Mas a ordem certa é esta: a língua muda, e depois muda-nos. Não somos nós que mudamos a língua na esperança de que ela nos mude da maneira que queremos. Se o objectivo é aproximarmo-nos dos brasileiros, aproximemo-nos dos brasileiros. Logo se verá se a língua resolve aproximar-se também.
Claro que isto são rabugices de leigo. As rabugices de linguista têm mais valor, evidentemente. Mas o leitor também rabujaria se um acordo internacional o obrigasse a abraçar de outra forma, ou a beijar de modo diferente. "Recepção" escreve-se com "p" atrás do "ç". É assim porque o "p" provoca uma convulsão no "e" - sem lhe tocar. E eu tenho alguma afeição por quem consegue fazer isso.»
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão"
Nota: Os textos, do R.A.P., aqui replicados (aliás, como os demais textos) respeitam (ou pelo menos tentam) o acordo luso-brasileiro de 1945.

sábado, 30 de julho de 2011

Escabeche

“Se eu mandasse, toda a gente era autarca uma vez na vida. Infelizmente, como os mandatos autárquicos chegam a durar 40 anos, nem toda a gente teria uma esperança de vida que lhe permitisse aguardar a sua vez. Mas parece-me evidente que a gestão de uma autarquia rejuvenesce. Aponto como exemplo Fernando Ruas, presidente não só da Câmara de Viseu como também da associação de municípios, e que, aos 62 anos, não tem ainda um único cabelo branco. Há qualquer coisa no trabalho autárquico que protege a saúde de quem o executa. Creio que é a absoluta ausência de preocupações. O autarca, em princípio, sabe que não há nada que o apanhe. Se fizer falcatruas, em princípio não é condenado. Mas, se for condenado, mais depressa é reeleito. Se for reeleito, não pode ir preso. Mas, se for preso, foge para o Brasil. O destino do autarca oscila entre o poder perpétuo e o turismo tropical. São ‘minimonarquias’ que podem ser interrompidas por ‘miniexílios’ dourados. Além disso, a actividade autárquica é isenta de stresse, como pôde voltar a constatar-se esta semana: todo o País está absorvido pelos problemas do desemprego, da crise da dívida, do décimo terceiro mês e da bancarrota, mas a Câmara Municipal do Fundão não deixa que essas pequenas preocupações a afectem, e tem tempo para tratar dos grandes assuntos. E decidiu processar a organização do concurso gastronómico 7 Maravilhas por uma infracção culinária. Ao que parece, a perdiz de escabeche, que a edilidade do Fundão garante ser originária de Alpedrinha, vai apresentar-se a concurso como se fosse - e peço ao leitor que contenha a revolta e a indignação - de Idanha-a-Nova. Assim que a Câmara do Fundão percebeu que ia ser espoliada da perdiz de escabeche entrou em acção e fez, aliás apropriadamente, um escabeche. De acordo com o Expresso, a Câmara ameaça "accionar todos os meios legais que se encontrem disponíveis e se afigurem necessários e pertinentes". Sossega-me saber que, de acordo com este comunicado, a Câmara não pretende accionar meios legais que não se encontrem disponíveis. Já não é mau. Mas a intenção de recorrer a todos os disponíveis faz antever uma batalha legal longa e violenta: quem tenha vagar para ir à procura, encontra, na legislação portuguesa, uma vastíssima gama de meios apropriados para a defesa das vítimas da deslocalização dos pratos de caça. O Código Civil dedica dois capítulos a este flagelo, e há uma subsecção que regulamenta em especial os escabeches. O perpetrador do crime que se cuide. O ‘desperdizamento’ da Câmara do Fundão não passará impune.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

sexta-feira, 8 de julho de 2011

"Este é o melhor governo das últimas três semanas"

“De um modo geral, as pessoas olham com desconfiança para os políticos e com alguma admiração para os comentadores políticos. Por outro lado, olham com alguma admiração para os futebolistas e com desconfiança para os comentadores de futebol. As pessoas, como sempre, estão erradas. Se alguma coisa distingue os comentadores de política dos de futebol é que os de futebol são melhores. A principal marca dessa superioridade é esta: os comentadores políticos recorrem muitas vezes a metáforas do mundo do futebol para explicar a política, mas os comentadores de futebol teriam justa repugnância em utilizar o jargão político para explicar uma coisa pura e bonita como é o futebol. Além disso, há nos comentadores de futebol uma humildade que os eleva. Jorge Baptista pode criticar Cristiano Ronaldo, mas não ousa acreditar que faria melhor do que ele no campo. Em contraponto, qualquer editor de política que ponha em causa as opções de determinado primeiro-ministro não esconde que, lá no fundo, acredita que seria um chefe de Governo mais competente. A ingenuidade dos comentadores de política, que contrasta com a frieza experiente dos comentadores de futebol, vem ao de cima em momentos como este. A formação de um novo Governo tem dividido as opiniões: certos comentadores crêem que há razões para ter esperança porque as escolhas de Passos Coelho foram boas, outros acham que não há motivo para festa porque as escolhas de Passos Coelho foram más. Uma vez mais, estão todos errados. Este Governo não vai fracassar apesar das boas escolhas ou por causa das más escolhas. Este Governo vai fracassar porque é um Governo. E, ainda por cima, é um Governo de Portugal. São logo duas circunstâncias funestas. No futebol, compreende-se mal que haja euforia antes do início do campeonato. Na política, não se compreende de todo que haja euforia antes do início de uma legislatura. Ao menos, no fim de um campeonato, haverá sempre um campeão. No fim de uma legislatura só tem havido ressentimento e desilusão. E, sendo o mesmo tipo de ressentimento, custa a perceber de que modo é que continua a gerar euforia. Dou um exemplo: neste momento, há comentadores que depositam grande esperança no novo Governo de coligação entre PSD e CDS. No entanto, da última vez que PSD e CDS se juntaram para governar, o eleitorado ficou tão satisfeito que, na primeira oportunidade que teve, deu uma maioria absoluta a José Sócrates. PSD e CDS foram tão maus que fizeram Sócrates parecer excelente. Depois, Sócrates foi tão mau que fez PSD e CDS parecerem salvadores. Há comentadores políticos que ainda caem nesta esparrela. Rui Santos nunca cairia. Claro que há dois ou três aspectos positivos no novo Governo. O primeiro é que o partido que venceu as eleições está em minoria no Governo. Em 12 ministros tem 5, contando com Passos Coelho. Pode ser uma inovação interessante. O segundo é que, com a nomeação para primeiro-ministro, Passos Coelho conseguiu finalmente obter um emprego sem ser numa empresa administrada por Ângelo Correia. Aqui está o que pode ser uma inspiração para os desempregados. Com tempo, esforço e sorte, podem arranjar um emprego sem cunhas. Basta que, quando concorrerem a determinado posto de trabalho, o outro candidato ao lugar seja José Sócrates.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da semana passada

quinta-feira, 16 de junho de 2011

As Nuvens de Aristófanes

“Deve ser a isto que os especialistas chamam a admirável intemporalidade dos clássicos. Uma peça de Aristófanes, escrita há uns 25 séculos, parece um decalque da actual vida portuguesa. Como é óbvio, trata-se de uma comédia. Claro que esta feliz coincidência pode dever-se menos à habilidade de Aristófanes para se manter actual e mais à habilidade de Portugal para se manter atrasado. Mas, seja o talento do retratista ou do retratado, não deixa de ser notável. Na peça ‘Nuvens’, um homem chamado Estrepsíades está cheio de dívidas e cercado por credores. Resolve então recorrer a Sócrates. O objectivo é aprender a argumentar com o famoso filósofo e, através de falácias, demonstrar aos credores que uma dívida não é, na verdade, uma dívida. Em Aristófanes, Sócrates é um charlatão. Excepto na opinião de um pequeno grupo de apaniguados, é um troca-tintas. Um impostor. Um pequeno bandido, digamos. Este é, talvez, o ponto em que a peça se afasta mais da nossa realidade - declaração que faço imbuído do mais profundo amor à verdade e também para evitar processos judiciais. Mas, tirando esta discrepância flagrante e grotesca, tudo na história faz lembrar o Portugal do século XXI. Estrepsíades representa os portugueses (especialmente aqueles portugueses, ainda não especificados, que se endividaram em 78 mil milhões de euros), os credores são os credores, e Sócrates é Sócrates. O facto de a peça decorrer na Grécia - que é, neste momento, o país mais parecido com Portugal - também ajuda. Todos os que acreditam nas capacidades proféticas da literatura devem, no entanto, desiludir-se. Não será a peça de Aristófanes a mostrar-nos o futuro. Como toda a gente que aposta em Sócrates para lhe resolver o problema das dívidas, Estrepsíades tem um grande dissabor, e fica ainda pior do que estava. Infelizmente, a peça acaba exactamente nesse ponto. Vemos Estrepsíades vingar-se de Sócrates, é verdade. Mas o que acontece à vida de Estrepsíades depois de castigar Sócrates? Não sabemos. Aristófanes não diz. Talvez porque, como todas as comédias, a peça tenta ocupar-se apenas das coisas que dão vontade de rir. Quando a tragédia a sério começa, cai o pano.”
Ricardo Araújo Pereira, hoje, na ‘Visão’

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A fome “negra” de Nobre

«Tal como Fernando Nobre previu, a sua decisão de aceitar um lugar numa lista partidária depois de ter dito que nunca aceitaria nada que tivesse a ver com a política partidária foi mal interpretada. A generalidade das pessoas, cuja capacidade hermenêutica é muito deficiente, interpretou o gesto como uma manifestação de incoerência de Fernando Nobre. Na verdade, trata-se de uma manifestação de incoerência dos partidos. O que está em causa não é Fernando Nobre ter dito categoricamente uma coisa e depois ter feito o contrário, o que está em causa é que, mais uma vez, um partido apoia uma pessoa que diz categoricamente uma coisa e depois faz o contrário. Depois de ter passado toda a campanha presidencial exprimindo a mais profunda repugnância pelos partidos, Nobre prepara-se agora para fazer o mesmo nas legislativas mas ao serviço de um partido. A candidatura como cabeça de lista do PSD por Lisboa aprofunda a crítica de Nobre aos partidos. É mais um grito de denúncia da podridão do sistema partidário. É, no fundo, uma candidatura que brada: "Vejam como são hipócritas os partidos! Vejam o modo como conseguiram apropriar-se daquela conversa tão bonita sobre cidadania! Vejam a rapidez com que arregimentaram esta espécie de Zita Seabra instantânea que sou eu! Malditos partidos! (A propósito, votem neste partido, para que, com a minha eleição, fique bem clara a perfídia dos seus dirigentes.)" A sabedoria popular parece validar a escolha de Fernando Nobre. De facto, há um provérbio que diz "Não cuspas no prato em que comeste", mas não há qualquer ditado que recomende "Não comas no prato em que cuspiste", como Nobre se prepara para fazer. O povo desaconselha a ingratidão, mas sabe que a fome é negra. Fernando Nobre apoiou Durão Barroso nas legislativas de 2002, Mário Soares nas presidenciais de 2006 e o Bloco de Esquerda nas europeias de 2009. É um homem que não gosta de partidos mas já apoiou quase todos, o que é cristão. De repente, Nobre deixou de apoiar partidos e passou a criticá-los. E foi exactamente nessa altura que os partidos passaram a apoiá-lo a ele. Pode não ser um político, mas sabe muito de política. O activista antipartidos aceita encabeçar uma lista do PSD numa altura em que até antigos presidentes do partido, como Manuela Ferreira Leite e Marques Mendes, não aceitam. É sempre assim: essa gente da política partidária está sempre pronta para ajudar os partidos não colaborando com eles. Deviam ter a coragem, a audácia e a rebeldia de dizer, como o Dr. Fernando Nobre: “Vocês não prestam para nada. Em que é que eu posso ajudar-vos?”»
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão”, desta semana

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capital financeiro e capital semântico

«Primeiro, Portugal era um dos PIGS. Agora, estamos a um passo de ser lixo. Quando um país se move na alta finança é logo tratado com outra educação. As "agências de notação financeira" e os "mercados" dizem que o porco está a caminho do lixo. O porco somos nós. E o lixo também, o que é curioso - mas fisicamente improvável, uma vez que não é fácil alguém estar a caminho de si próprio. Não deixa de ser interessante que estas opiniões dos mercados não sejam propriamente secretas. São publicadas nas primeiras páginas dos jornais. Há manchetes sobre o porco e reportagens acerca da distância a que ele está do lixo. Os mercados podem ter muitos defeitos, mas ao menos são sinceros. Se acham que um país é porco e caminha para o lixo, dizem-lho na cara. Infelizmente, este tipo de linguagem só se tolera a quem usa gravata. A hipótese de Portugal ripostar parece estar posta de lado. Seria justo que, ao lado de uma notícia que diz "Mercados consideram que o país está a um patamar do lixo", houvesse outra cuja manchete fosse: "Portugal tenta renegociar a dívida junto dos chulos". O problema é que os mercados, além de deterem o capital financeiro, detêm ainda o capital semântico. Tudo o que seja capital, eles açambarcam. Um insulto na boca dos credores é realismo económico, na boca dos devedores é primarismo ideológico. Esta evolução do jargão económico tem, como é evidente, pontos positivos. A substituição de palavras como ‘subprime´ e ‘rating’ por terminologia financeira como "porcos" e "lixo" é um contributo muito saudável para aproximar os cidadãos da vida económica. Pouca gente saberá ao certo o que é o ‘subprime’, mas não há ninguém que não saiba o que é um porco. Quanto menos bem-sucedidos somos, na economia, melhor dominamos o vocabulário técnico, o que é reconfortante. Antes da crise, eu não sabia bem o que poderia significar uma queda no ‘rating’. Agora, percebo perfeitamente que sou lixo. O que se perde de um lado em qualidade de vida, ganha-se do outro em conhecimento. A qualidade de vida tem sido sobrevalorizada. O conhecimento é que é importante.»
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

segunda-feira, 28 de março de 2011

"O golfe como desígnio nacional"

“A intenção do Governo de reduzir para 6% a taxa do IVA sobre a prática do golfe é um orgulho para os golfistas e uma vergonha para os sindicalistas. Um grupo de pessoas com fraca organização colectiva, sem recurso a manifestações nem presença na mesa da concertação social, consegue ser mais eficaz na satisfação das suas justas aspirações do que a CGTP e a UGT juntas. O fenómeno volta também a indicar uma relação preocupante entre a contestação social bem sucedida e o uso de calças ridículas: depois de manifestantes dos anos 70, com as suas calças à boca-de-sino, terem obtido conquistas sociais importantes, os golfistas conseguem agora o seu lugar na história da luta reivindicativa. Parece evidente que os trabalhadores de hoje só não gozam de melhores condições de vida porque Carvalho da Silva não tem a argúcia de comparecer nas manifestações de pijama. Além dos golfistas, o Governo também está de parabéns. É verdade que cedeu a um grupo social, mas soube fazê-lo enviando um sinal à sociedade: em Portugal, o golfe é um desporto cada vez mais barato, e ser pobre é um desporto cada vez mais caro. A mensagem do Governo é clara: "Portugueses, não sejam pobres." É tão caro ser pobre em Portugal, com todas as medidas que o Governo tem tomado para taxar a pobreza, que só por teimosia um grupo cada vez mais alargado de pessoas se mantém pobre. Por preguiça ou burrice não levam a sério o esforço que o Governo tem feito, através de cargas fiscais e outras penalizações, para desencorajar quem insiste em ter má qualidade de vida e premiar quem tem boa qualidade de vida. Quem vive melhor paga menos impostos e tem mais benefícios, mas nem assim os portugueses percebem que devem passar a viver melhor. É incrível. A argumentação do Governo é, além do mais, impossível de rebater: o golfe constitui uma importante alavanca do turismo. Há inúmeros cidadãos estrangeiros que procuram o nosso país para praticar o desporto. Mas, depois de terem gasto vários milhares de euros em tacos, viagens e hotéis, se os obrigam a pagar uma taxa de 23%, igual à dos refrigerantes e das latas de conserva, pegam no seu equipamento e vão jogar para países em que o IVA não lhes dê cabo do parco orçamento que têm para alimentação, saúde e jacto privado. Quem persiste em viver com dificuldades, envergonhando-se a si mesmo e ao País, e continua a queixar-se dos impostos sobre bens importantes, deve pensar no modo como pode contribuir para o turismo em Portugal. Aglomerem-se nas imediações dos campos de golfe e convençam os jogadores a beber leite achocolatado e iogurtes. Em princípio, o IVA dos produtos que eles consomem baixa imediatamente de 23 para 6 por cento. Não falha.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

“Ao Salvamento! Mercados e crianças, primeiro.”

“A entrevista que Cavaco Silva deu esta semana ao Expresso é a todos os títulos, surpreendente. Em primeiro lugar, é surpreendente que tenha sido Cavaco a dá-la, em vez de Marcelo Rebelo de Sousa. Pessoalmente, prefiro saber pela boca do professor Marcelo aquilo que o Presidente da República pensa e faz. Como se viu no caso do anúncio da candidatura à presidência, o professor Marcelo é mais rápido, mais claro e mais sucinto do que Cavaco a fornecer informações sobre Cavaco. Percebe-se mal, por isso, a opção do Expresso: entrevistar Cavaco Silva quando se quer saber a opinião de Cavaco Silva é, simplesmente, mau jornalismo. No entanto, há que admitir que o Presidente se esforçou por falar de si mesmo como Marcelo Rebelo de Sousa falaria: com aquele tipo de elogios que amesquinham. Disse Cavaco: "Sou o único Presidente que não dissolveu a assembleia, pois prezo a estabilidade." Ou seja, Cavaco dirigiu a si mesmo um louvor que parece mesmo uma injúria. Qual dos leitores está grato ao Presidente pela soberba estabilidade em que vive? Imagino o elevadíssimo número de portugueses que estão em casa a pensar: "Bom, acabo de ficar desempregado e, tendo em conta o brutal aumento do custo de vida, o subsídio não me chega para sustentar a família. Mas sempre fico com mais tempo para apreciar esta magnífica estabilidade que o Sr. Presidente da República me tem proporcionado." No fundo, gabar-se de ser o único que não dissolveu a assembleia equivale a dizer: "Reparem que eu não fiz nada. Escusam de agradecer." Marcelo não teria sido mais perverso. De resto, Cavaco Silva partilha as preocupações de toda a gente que não vai sentir na pele os efeitos da nova política de austeridade: é importante que o PSD viabilize rapidamente o orçamento, para que o orçamento possa começar a inviabilizar a nossa vida. Ainda sou do tempo em que os orçamentos tinham por objectivo facilitar a vida dos cidadãos. Agora, trata-se de facilitar a vida a essa entidade misteriosa que se chama "os mercados". Antigamente, os eleitores votavam nos seus representantes e estes, em retribuição, definiam um orçamento que servisse as aspirações dos eleitores. Agora, há que agradar aos mercados, o que torna o trabalho dos deputados mais complexo, até porque os mercados são mais exigentes que os eleitores. E mais poderosos. Os mercados são uma espécie de bicho feroz cujo aspecto ninguém conhece ao certo. A única coisa que sabemos acerca dos mercados é que levam a mal se os portugueses não passarem a pagar mais pelo leite. E sabemos também que são uma entidade colectiva, o que assusta mais. Não temos de agradar apenas a um mercado, mas sim a uma pluralidade de mercados. Os mercados atacam em grupo, como os gangues. Mas são menos meigos e levam-nos mais dinheiro.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

domingo, 24 de outubro de 2010

“I love you música portuguesa”

«Temo não saber inglês suficiente para compreender a música portuguesa. Não quero parecer velho, mas ainda sou do tempo em que a música portuguesa era cantada em português. Lembro-me bem dessa altura em que um aspirante a cantor conseguia pegar numa guitarra sem começar a verter as suas canções para uma língua que os turistas entendessem. Era estranho, claro. Gente portuguesa a exprimir-se em português sempre me fez confusão. Trata-se de um idioma bastante limitado, que restringe as possibilidades de expressão dos seus falantes, e portanto não admira que haja quem se veja forçado a recorrer à língua inglesa quando se trata de transmitir pensamentos realmente sofisticados, tais como "I love you, baby", "Please forgive me, baby", "Don't break my heart, baby" ou "Yeah, baby, you are my baby". Não posso, no entanto, deixar de notar que ainda há um longo caminho para percorrer. Neste momento, os artistas portugueses que cantam em inglês ainda estão condenados a dar entrevistas em português. Como é evidente, fazem falta jornais portugueses escritos em língua inglesa - ou, pelo menos, jornais portugueses que, embora fazendo perguntas em português (se querem mesmo insistir nesse capricho), permitam que as respostas possam ser dadas em inglês. Caso contrário, prosseguirá esta violência desumana que consiste em forçar cidadãos a exprimirem-se na sua própria língua. Creio que há um ou dois artigos na Declaração Universal dos Direitos Humanos que censuram essa prática. Felizmente, nem tudo joga contra os músicos portugueses que cantam em inglês. Por coincidência, a língua na qual eles se sentem mais à vontade é falada internacionalmente. Isso pode evitar-lhes embaraços parecidos com os que sempre afligiram os músicos portugueses com mais projecção lá fora. Todos nos lembramos dos concertos da Amália, sistematicamente interrompidos por espectadores que diziam: "Amália, what are you doing? Please sing in english! We don't understand you!" Para não falar do caso dos Madredeus, obrigados a tornar as suas letras mais acessíveis ao público estrangeiro ("À porta, I love you baby, daquela igreja, I miss you baby, vai um grande corrupio"). O meu único receio é que este desamor à língua portuguesa, e a ideia de que ela pode prejudicar o nosso ofício, tenham deflagrado no mundo da música e se propaguem a outras profissões. Que, por exemplo, um número considerável de canalizadores decida passar a consertar torneiras em inglês, para facilitar uma eventual carreira internacional, ou apenas porque tem mais estilo. "Let me unclog your toilet baby!" Enfim, não é o tipo de conversa que gostaria de ter com um canalizador. Embora reconheça que a frase talvez desse uma excelente música portuguesa.»
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Para que quer um palhaço quando pode ter um gatuno?

«O povo brasileiro foi às urnas e elegeu um palhaço para o Parlamento. "Que sorte. Só um?", pergunta o leitor. Pronto. Está visto que o leitor é dado à demagogia. Pois bem, comigo não conta para esse tipo de brincadeira. Não tenho nada contra a demagogia, note-se. Mas nem toda a demagogia tem aquela qualidade que eu exijo às manipulações e aos logros. Há a demagogia bonita e sensata, que compara os deputados com gatunos e outros profissionais da mesma área de actividade, e há a demagogia disparatada, que estabelece um paralelo absurdo entre deputados e palhaços. Sem querer ser corporativista, creio que os palhaços não merecem o desaforo. A generalidade dos analistas políticos brasileiros tem dito que a eleição de Tiririca deve ser vista como o resultado de um voto de protesto. Já que o Parlamento brasileiro é um circo, terá raciocinado o povo, vamos eleger um palhaço. A ser verdade, o povo raciocinou de um modo extremamente preconceituoso. Desde quando, numa democracia, há ofícios que não devem ter lugar num parlamento - a não ser por brincadeira? Que têm um canalizador, um electricista e um gestor de empresas que os recomende mais para desempenharem o cargo de deputado do que um palhaço? No que toca a profissões, creio que a democracia não deve discriminar. Pessoalmente, acredito que até advogados devem poder ser eleitos sem remorso dos eleitores. Não, o prestígio social de determinada profissão não tem qualquer influência na capacidade dos titulares de cargos públicos. É preciso não saber como governam os engenheiros para pensar que a eleição de um palhaço pode provocar sarilhos divertidos que ponham em causa o bom funcionamento do sistema. Não é possível saber ao certo até que ponto o que se diz do deputado Tiririca corresponde à verdade ou não passa de um conjunto de calúnias destinadas a apoucar um desgraçado. Uma das acusações que lhe fizeram foi a de que não saberia ler nem escrever. É velha e conhecida a estratégia de atacar a falta de habilitações literárias dos candidatos, e Tiririca, certamente por inexperiência, não teve a audácia de apresentar um diploma, mesmo que tivesse sido obtido, por exemplo, num domingo - o que daria, aliás, uma boa piada. Mas, de facto, a suspeita de que Tiririca não lê é legítima. Pelo menos, sabemos que não lê a imprensa portuguesa. Se o fizesse, perceberia que o seu slogan não faz sentido: "Vota Tiririca, pior do que está não fica." Bastava-lhe ter lido uma ou duas notícias de um jornal português para perceber que é perfeitamente possível um país ficar pior do que o Brasil está neste momento.»
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de ontem

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Tantas vuvuzelas para tão pouco futebol

“A característica mais saliente do campeonato mundial de futebol da África do Sul é o facto de todos os jogos decorrerem dentro do reactor de um avião que está no meio de um engarrafamento de camionetas com a panela do escape rota, camionetas essas que levam dois milhões de lenhadores, cada um deles munido de duas motosserras. O espectador que arrisca acompanhar as partidas tem a sensação de estar uma hora e meia com uma varejeira do tamanho de um caniche junto de cada ouvido. Sendo que essas varejeiras também estão munidas de motosserras. Nesse sentido, o Costa do Marfim - Portugal principiou com uma falsidade: ao contrário do que os jogadores portugueses cantaram, não se sentia a voz dos egrégios avós. Em geral, não se sente a voz de ninguém, que as vuvuzelas não deixam. O que se perde em paciência ganha-se em aprumo disciplinar: muito dificilmente um jogador será expulso por palavras, na África do Sul. Os árbitros não ouvem insultos nem que o Placido Domingo lhos grite aos ouvidos. Talvez não seja mau passar a avaliar os países candidatos à organização do torneio, tendo em conta o seu instrumento nacional. Países em que haja apreço musical por tubas, violoncelos e pianos de cauda dão bons anfitriões. Tudo o que não possa ser transportado para a bancada de um estádio deve ser valorizado. Entretanto, apercebo-me de que fiz referência ao Costa do Marfim - Portugal e o leitor, se calhar, nem sabe que houve jogo. É tão raro haver uma notícia, um comentário, uma análise, um especial de quatro horas e meia sobre o Mundial que, quem não estiver com atenção, perde a maior parte das informações. Imagino o leitor a rebolar no chão, convulso de riso, por causa deste belo naco de ironia. Na verdade, é mais fácil uma pessoa esquecer-se de que o Natal calha a 25 de Dezembro do que ignorar que Portugal jogava com a Costa do Marfim no dia 15 de Junho. E a tensão em que esperámos pelo dia da estreia de Portugal no Mundial, a indignação com que vituperámos o ligamento que deixou de aconchegar a clavícula do Nani, a expectativa com que acompanhámos a partida do autocarro da equipa, o interesse com que seguimos a chegada do autocarro da equipa, o orgulho com que assistimos ao estacionamento do autocarro da equipa - tudo valeu a pena. Portugal não perdeu. E reduziu a Costa do Marfim à dimensão de Cabo Verde, que também já tinha humilhado com igual empate a zero bolas. Sobre o jogo propriamente dito, creio que não tenho qualificações para me pronunciar. Infelizmente, sou um rústico incapaz de captar as subtilezas do verdadeiro futebol de qualidade. Só para o leitor ficar com uma ideia de quão primária é a minha perspectiva sobre o jogo, devo dizer-lhe que prefiro aquelas partidas em que os jogadores fazem boas jogadas, no fim das quais enfiam mesmo a bola na baliza dos adversários. Já houve um tempo em que a selecção nacional jogava dessa forma bruta e pouco sofisticada mas, segundo me informam os especialistas, agora é que a equipa de Portugal está a ser treinada como deve ser. Por um professor, e tudo. No entanto, no fim do jogo, e antes de entrar no autocarro (cuja partida voltou a emocionar-nos) Deco criticou o estilo do futebol definido por Carlos Queirós. Nani já tinha deixado críticas implícitas e Ronaldo teve a desfaçatez de recordar Scolari, na última conferência de imprensa. Tudo isto se torna mais grave por ocorrer nas vésperas do nosso encontro com a Coreia do Norte. Será o embate entre a selecção do Querido Líder e uma equipa cujo líder é tão pouco querido. Pode ser perigoso.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de ontem

sábado, 5 de junho de 2010

“Hannah Montana: um estudo”

“Esperava-se que a passagem de Miley Cyrus por Portugal estimulasse uma reflexão profunda acerca do fenómeno Hannah Montana. Tal não sucedeu. Não houve um único colunista português que tenha dedicado cinco minutos a pensar na menina de 16 anos que todos os pais de crianças pré-adolescentes desejam que contraia uma amigdalite que a impeça de cantar até 2025. Pois bem, esse silêncio acaba hoje. Hannah Montana é uma série televisiva cuja protagonista leva uma vida normal durante o dia e, à noite, em segredo, veste uma roupa provocante e sai de casa para ir trabalhar. Esqueci-me de dizer que se trata de uma série infantil. E que a protagonista trabalha à noite como cantora. Os leitores que já se tinham precipitado para o canal Disney devem sentir-se fortemente envergonhados e procurar tratamento. A série conta a história de Miley Stewart, uma adolescente normal e pacata frequentadora da escola que tem, no entanto, uma identidade secreta: depois das aulas, beneficiando de um astuto disfarce que consiste numa cabeleira loira, encanta o mundo inteiro como Hannah Montana, uma estrela pop de indumentária galdéria. Ou seja, durante o dia é uma vulgar rapariga, durante a noite é uma rapariga vulgar. Miley Cyrus, a actriz que faz de Miley Stweart e Hannah Montana, acaba de dar, no Rock in Rio, um concerto que, nos primeiros cinco minutos, foi o mais concorrido do festival. O concerto começou às 22h00 e, às 22h05, 70% da plateia já tinha ido para casa fazer ó-ó, pois estava com soninho. Mas Miley bateu, ainda assim, o recorde de assistência, deixando para trás, por exemplo, Elton John. Ambos os artistas vestem lantejoulas, mas o público distingue claramente aquele que prefere. Mas o mais interessante em Hannah Montana talvez seja o modo como a série contribui para um mundo mais moderno e mais tolerante. Hannah Montana é uma referência e uma inspiração para pais travestis de todo o mundo. "Vês, Pedrinho? O papá é como a Hannah Montana: à noite põe uma peruca loira e passa a ser outra pessoa. Não é decadente, é fofinho. Não é estranho, é Disney." Talvez seja este o fascínio de Hannah Montana: uma estrela que sabe encantar as crianças mas também consegue ser entusiasmar o mundo do transformismo. Não há muitos artistas que se possam gabar do mesmo. E, aqui para nós, ainda bem.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão”, desta semana

quinta-feira, 29 de abril de 2010

“Este país não é para corruptos”

“(…) Que Portugal é um país livre de corrupção sabe toda a gente que tenha lido a notícia da absolvição de Domingos Névoa. O tribunal deu como provado que o arguido tinha oferecido 200 mil euros para que um titular de cargo político lhe fizesse um favor, mas absolveu-o por considerar que o político não tinha os poderes necessários para responder ao pedido. Ou seja, foi oferecido um suborno, mas a um destinatário inadequado. E, para o tribunal, quem tenta corromper a pessoa errada não é corrupto - é só parvo. A sentença, infelizmente, não esclarece se o raciocínio é válido para outros crimes: se, por exemplo, quem tenta assassinar a pessoa errada não é assassino, mas apenas incompetente; ou se quem tenta assaltar o banco errado não é ladrão, mas sim distraído. Neste último caso a prática de irregularidades é extraordinariamente difícil, uma vez que mesmo quem assalta o banco certo só é ladrão se não for administrador. O hipotético suborno de Domingos Névoa estava ferido de irregularidade, e por isso não podia aspirar a receber o nobre título de suborno. O que se passou foi, no fundo, uma ilegalidade ilegal. O que, surpreendentemente, é legal. Significa isto que, em Portugal, há que ser especialmente talentoso para corromper. Não é corrupto quem quer. É preciso saber fazer as coisas bem feitas e seguir a tramitação apropriada. Não é acto que se pratique à balda, caso contrário o tribunal rejeita as pretensões do candidato. «Tenha paciência», dizem os juízes. «Tente outra vez. Isto não é corrupção que se apresente.»”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de hoje

sexta-feira, 19 de março de 2010

“O PEC peca por parco”

"É irónico que os problemas económicos possam ser responsáveis pelas maiores desigualdades sociais mas que a economia, enquanto ciência, seja tão igualitária. Alguns dos maiores especialistas em economia previram tanto como eu o aparecimento da crise. A economia tem essa característica fascinante: por muito que alguém se dedique a estudá-la, aparentemente continua a ser um leigo. Um grande administrador tem tanta dificuldade em evitar a calamitosa falência de um banco como um merceeiro versado apenas em contas de somar. Por isso, é com a consciência invulgarmente tranquila que me dedico à análise económica: na pior das hipóteses, os meus comentários farão tão pouco sentido como os de um professor de economia. Quando o governo propôs o Programa de Estabilidade e Crescimento, a minha primeira impressão foi a de que o PEC tinha um E a mais. Duvido de que a nossa economia precise da ajuda de um programa para estabilizar, uma vez que se encontra estável (no sentido em que um paciente em estado comatoso se mantém estável) há muitos anos. As críticas de alguma oposição parecem-me ainda menos pertinentes. É falso que o Programa de Estabilidade e Crescimento obrigue uma parte significativa dos portugueses a apertar o cinto. E é falso sobretudo na medida em que aquilo que os portugueses têm à cintura já não é um cinto há algum tempo: é um garrote. O que vai ser preciso apertar agora é o garrote. O grande raciocínio que sustenta a actual estratégia económica é importado da caça: o importante é não afugentar. Não convém taxar os lucros dos bancos e das grandes empresas para não afugentar o investimento. É desaconselhável taxar as transacções da bolsa para não afugentar o capital. Quem sobra? Os trabalhadores - que, além de serem muitos, são gente que não se deixa afugentar, porque precisa mesmo do emprego. Um trabalhador por conta de outrem trabalha, na verdade, por conta de dois, digamos, outrens: por conta do empregador e por conta do Estado. São os trabalhadores, e não as empresas e os bancos, os grandes "criadores de riqueza". Criam a riqueza dos patrões e a do Estado, que depois toma essa parte da riqueza e a devolve às empresas e aos bancos, sob a forma de nacionalização do que der prejuízo e privatização do que der lucro. Nota-se muito que estou a assobiar a Internacional enquanto escrevo isto? A política fiscal é igualmente clara: as pessoas que ganham menos do que eu pagam menos impostos do que eu; a generalidade das que ganham mais também paga menos impostos do que eu. O governo alega que irá aumentar a taxa de impostos a quem ganha mais de 150 mil euros por ano, o que seria uma excelente medida, mas não é exactamente verdadeiro. O governo vai aumentar a taxa de impostos a quem declara mais de 150 mil euros por ano, o que é ligeiramente diferente. Não há assim tantos contribuintes nessas condições. Resta a consolação de constatar que o congelamento dos salários dos funcionários públicos não é uma medida assim tão áspera. Os salários, a bem dizer, têm estado no frigorífico. Não vão propriamente sofrer um choque térmico."
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” do passado dia 11