“A característica mais saliente do campeonato mundial de futebol da África do Sul é o facto de todos os jogos decorrerem dentro do reactor de um avião que está no meio de um engarrafamento de camionetas com a panela do escape rota, camionetas essas que levam dois milhões de lenhadores, cada um deles munido de duas motosserras. O espectador que arrisca acompanhar as partidas tem a sensação de estar uma hora e meia com uma varejeira do tamanho de um caniche junto de cada ouvido. Sendo que essas varejeiras também estão munidas de motosserras. Nesse sentido, o Costa do Marfim - Portugal principiou com uma falsidade: ao contrário do que os jogadores portugueses cantaram, não se sentia a voz dos egrégios avós. Em geral, não se sente a voz de ninguém, que as vuvuzelas não deixam. O que se perde em paciência ganha-se em aprumo disciplinar: muito dificilmente um jogador será expulso por palavras, na África do Sul. Os árbitros não ouvem insultos nem que o Placido Domingo lhos grite aos ouvidos. Talvez não seja mau passar a avaliar os países candidatos à organização do torneio, tendo em conta o seu instrumento nacional. Países em que haja apreço musical por tubas, violoncelos e pianos de cauda dão bons anfitriões. Tudo o que não possa ser transportado para a bancada de um estádio deve ser valorizado.
Entretanto, apercebo-me de que fiz referência ao Costa do Marfim - Portugal e o leitor, se calhar, nem sabe que houve jogo. É tão raro haver uma notícia, um comentário, uma análise, um especial de quatro horas e meia sobre o Mundial que, quem não estiver com atenção, perde a maior parte das informações. Imagino o leitor a rebolar no chão, convulso de riso, por causa deste belo naco de ironia. Na verdade, é mais fácil uma pessoa esquecer-se de que o Natal calha a 25 de Dezembro do que ignorar que Portugal jogava com a Costa do Marfim no dia 15 de Junho.
E a tensão em que esperámos pelo dia da estreia de Portugal no Mundial, a indignação com que vituperámos o ligamento que deixou de aconchegar a clavícula do Nani, a expectativa com que acompanhámos a partida do autocarro da equipa, o interesse com que seguimos a chegada do autocarro da equipa, o orgulho com que assistimos ao estacionamento do autocarro da equipa - tudo valeu a pena. Portugal não perdeu. E reduziu a Costa do Marfim à dimensão de Cabo Verde, que também já tinha humilhado com igual empate a zero bolas.
Sobre o jogo propriamente dito, creio que não tenho qualificações para me pronunciar. Infelizmente, sou um rústico incapaz de captar as subtilezas do verdadeiro futebol de qualidade. Só para o leitor ficar com uma ideia de quão primária é a minha perspectiva sobre o jogo, devo dizer-lhe que prefiro aquelas partidas em que os jogadores fazem boas jogadas, no fim das quais enfiam mesmo a bola na baliza dos adversários. Já houve um tempo em que a selecção nacional jogava dessa forma bruta e pouco sofisticada mas, segundo me informam os especialistas, agora é que a equipa de Portugal está a ser treinada como deve ser. Por um professor, e tudo. No entanto, no fim do jogo, e antes de entrar no autocarro (cuja partida voltou a emocionar-nos) Deco criticou o estilo do futebol definido por Carlos Queirós. Nani já tinha deixado críticas implícitas e Ronaldo teve a desfaçatez de recordar Scolari, na última conferência de imprensa. Tudo isto se torna mais grave por ocorrer nas vésperas do nosso encontro com a Coreia do Norte. Será o embate entre a selecção do Querido Líder e uma equipa cujo líder é tão pouco querido. Pode ser perigoso.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de ontem