"Terraplanistas
são eles"
"Antes da Covid, o “argumento”
mais revelador da falta de argumentos e de neurónios de quem o utilizava era o
da Rennie. Quando alguém confrontava um palerma com alguma coisa que lhe
desagradasse, o palerma respondia imediatamente: “Toma Rennie que isso passa”,
e a seguir retirava-se triunfante e seguro de que ganhara o debate. Num país
cujo serviço de saúde não colapsasse à primeira oportunidade, o palerma
ganharia a avaliação de uma junta de psiquiatras, mas esse é outro ponto. Aqui,
o ponto é o recuso ao refluxo gástrico, vulgo azia, para encerrar uma
discussão. Às vezes, o Kompensan substituía a Rennie, embora não houvesse massa
encefálica que substituísse o ar morno na caixa craniana dessa gente. Bons
tempos.
Em tempos de Covid, e contra
todas as expectativas, o nível da “argumentação” conseguiu baixar. Hoje, a turba indistinta do
“fique em casa”, do “confinamento” eterno e das máscaras permanentes é tão
desprovida de razão que faz o pessoal da Rennie parecer sofisticado por comparação. O caso é particularmente irónico na medida em que, no
lugar dos antiácidos, a nova estirpe de magos da retórica invoca a ciência. Ou
melhor, aquilo que julga ser ciência, na verdade umas curvas estatísticas
apresentadas em reuniões no Infarmed por matemáticos e veterinários desejosos
de agradar ao governo. Não importa que as curvas sejam inúteis a descrever o
presente e desastrosas a prever o futuro. Não
importa que ninguém perceba a sensatez de trucidar uma economia débil a partir
de curvas mal amanhadas. E não importa que as
curvas se limitem a confirmar as conclusões previamente tomadas pelo dr. Costa
e pelo prof. Marcelo: manter os cidadãos em clausura parcial, rebentar com a
iniciativa privada e produzir mais dependência face ao Estado e às quadrilhas
que o controlam. Importa
que, na cabeça dos tontos, as curvas e as desumanas restrições que delas
“decorrem” são “ciência”. E importa sobretudo que, armados com solenidade
“científica”, os tontos se sentem habilitados a insultar e perseguir quem deles
discorda.
Quem sugerir que o estado de
emergência não é adequado para lidar com uma doença que quase só afecta
gravemente velhos é “negacionista”. Quem lembrar que teria sido decente proteger os
velhos, em alternativa a prender a população em peso, é “terraplanista”. Quem
notar que a evolução da Covid não depende exclusivamente de
“confinamentos” e regras abstrusas é “medieval”. Quem inventariar os países e as regiões em que a falta
de “confinamento” e de regras abstrusas coabita com o decréscimo nos infectados
e nos mortos é “conspiracionista”. Quem insiste em conviver com familiares e amigos é “bolsonarista”. Quem
repara que o Brasil tem menos mortos “com” ou “de” Covid do que Portugal é “primitivo”. Quem não
respeita as normas decretadas por governantes que não se dão ao respeito – nem
respeitam as próprias normas – é “fascista”. Quem questiona a prepotência é “nazi”. Quem não sai de
casa sem se disfarçar de iraniana ou assaltante de bancos é “anti-social”. Quem não
reduz a vastidão do universo a um vírus é “inconsciente”. Quem recorda que a existência implica sempre riscos é
“criminoso”.
Quem previne que esta demência colectiva terá consequências muito feias para
todos, excepto para os irresponsáveis que a provocaram, é “assassino” e indigno
de merecer o proverbial ventilador no dia em que precisar de um.
Estamos nisto.
É, literalmente, o mundo ao contrário. De
repente, a “ciência” viu-se apropriada por devotos da virologia de
veterinários, da fancaria dos telejornais e da hipocondria do inquilino de Belém. Ou seja, por místicos que não fazem a mínima ideia do
que é a ciência. Boa parte destes “cientistas” instantâneos até se diz de
esquerda, o que os coloca logo no mesmo campeonato da credibilidade de
astrólogos, cartomantes, homeopatas e cultores do Feng Shui. Muitos não sabem
ler uma tabela estatística. Muitos são incapazes de alinhavar uma frase sem
dois erros ortográficos e três de sintaxe. Muitos julgam que Steinmetz é um
defesa do Dortmund. Mas nenhum abdica de uma ideia infantil acerca do que é ciência
para fundamentar o seu dogmatismo.
Em circunstâncias normais, não
custaria deixar os fanáticos a berrar sozinhos e assistir de bancada ao
espectáculo. Afinal, há certa graça em ver em acção as principais
características do método científico: a intolerância, a fúria e a vontade de
enfiar blasfemos na cadeia ou na fogueira. A chatice é que as circunstâncias
não são normais, e estes adeptos do pensamento mágico (sem a parte do
pensamento) não contam apenas com a força da cegueira, que já é bastante. Para
azar dos que prezam a civilização, os
fanáticos contam com a força literal, a dos senhores que legislam alucinações e
a da polícia que as executa. A boçalidade, enfim, tomou por completo o poder,
através dos que o ocupam e através dos que os apoiam.
Salvo milagre, os factos estão condenados a subjugar-se a indivíduos que enchem
a boca com ciência como antes a enchiam com liberdade, embora desconheçam a
primeira e detestem a segunda. Terraplanistas, negacionistas e primitivos são
eles."
Alberto Gonçalves, no "Observador" de 27 de Março