Mostrar mensagens com a etiqueta Alberto Gonçalves. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alberto Gonçalves. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

“A Síndrome de Lisboa”

“Passei as férias a cinco minutos da fronteira espanhola, no cantinho superior direito da nossa ilustre nação. Acabadas as férias, tenciono continuar por cá. Não se está mal. Sobretudo está-se longe da monstruosidade em que se transformou Portugal, o Portugal urbano, litoral e que conta. Os custos da interioridade também trazem benefícios. Aqui, as pessoas são escassas e, por lucidez, cansaço, esquecimento ou confiança nas vacinas que as “autoridades” garantem não mudar nada, a maioria deixou de usar máscara. Já tenho entrado em estabelecimentos sem parecer um ladrão. O único bar nas proximidades fecha de madrugada, sem “distanciamento” nem lugares vagos. Isto parece normal, não parece Portugal.

De brinde, vive-se com um pé fora da pocilga, pronto para uma fuga definitiva e, por enquanto, para escapadelas provisórias. Combustível, compro em Espanha. Víveres nos supermercados, idem. Roupa, ibidem. Esplanadas para jantar fora nas noites mornas de Verão, há as de Zamora e Salamanca. Irrita-me um bocadinho que demasiados espanhóis ainda cumpram a recomendação do farrapo no nariz, mas não existem imposições e, ao contrário do que sucede em Lisboa ou no Porto, as vantagens sobrepõem-se largamente aos enxovalhos. Claro que ambos os países têm governos marxistas. Porém, o lado de lá possui tribunais e as regiões possuem a proverbial autonomia, pelo que Castela não prevê decretar “passes sanitários” ao bom velho estilo soviético.

Portugal ficou irrespirável. Quer dizer, irrespirável é o Nordeste, cujas temperaturas resolveram roçar os 40 graus nos últimos dias. Falo daquela respiração metafórica, própria dos lugares decentes. Hoje, Portugal não é decente. Nunca fui patriota, talvez por ser compatriota de muita gente que acho abominável. O que antes eu desconhecia é a desmesurada quantidade de gente abominável que partilha comigo a nacionalidade. A Covid ajudou à descoberta. A Covid não tem culpa, coitada: apenas serviu de pretexto para que um partido e um regime subordinado a um partido estendessem o controlo económico, social e mental a níveis que não pude, ou soube, prever.

De resto, o pior nem são os apetites totalitários de socialistas – perdoem a redundância – primários e corruptos. O pior é a docilidade com que o povo acolhe os apetites. Acolhe, aplaude e, não raramente, incentiva. Nos intervalos, denuncia os prevaricadores. Antes que me venham com equivalências ao “estrangeiro”, lembro por exemplo que o discurso de há um mês, em que Macron, o Pirolito, prometia o “apartheid” formal das pessoas não vacinadas ou que não ostentassem o “certificado” (não são sinónimos: sou vacinado e não quero certificado algum, que aliás jamais mostraria a estranhos) levou centenas de milhares a protestarem nas ruas. Os protestos têm sido recorrentes ao longo deste ano e meio na generalidade do Ocidente civilizado, mesmo que poucos Estados aplicassem tantas restrições, cometessem tantas ilegalidades e provocassem tantas misérias quanto o português. Perante isto, o português, o cidadão não o Estado, não deu um pio.

Deve ser uma insuficiência anatómica: o português não pia. Nos tempos que correm, nem sequer resmunga inconsequentemente como era tradição. Lembram-se? Confrontado com o buraco à porta de casa, por remendar há seis meses, o português ensaiava uns insultos para dirigir ao presidente da Junta. Seis minutos depois, cruzava-se com o dito autarca e agravava a hérnia com salamaleques. O buraco não surgia na conversa. Agora nem isso: o português salta directamente para o elogio do buraco. Em casos limites de subserviência, salta directamente para o buraco, a fim de provar a respectiva utilidade e os insuperáveis méritos do autarca.

Repito: o problema não é a Covid. É a reacção dos portugueses à avalanche ditatorial que a Covid suscitou. Desde o início desta história que o Governo ordenou as mais absurdas, contraditórias e humilhantes coisas para, dizem, “combater” a Covid. O português acatou todas. E só protesta quando as julga insuficientes. O desagrado dos nativos não é com a trela curta: é com a trela não ser curta o bastante. Poderíamos explicar este comportamento com o medo do vírus, que inclina os homens (e as senhoras) para a irracionalidade. A explicação seria fraquinha. A obediência cega não se nota exclusivamente nas matérias da saúde. O drama nacional não é a hipocondria. É a aversão à liberdade.

Numa curiosa adaptação colectiva da Síndrome de Estocolmo, o pavor de serem livres é o que justifica a patológica simpatia dos portugueses pelas quadrilhas que os oprimem. Não admira que livres sejam as quadrilhas. Livres de encarcerar os portugueses, livres de os arruinar, livres de os gozar, livres de os roubar, livres de os atropelar em sentido figurado e literal. Salvo excepções, o pessoal gosta. Salvo excepções, eu não gosto do pessoal. Não gosto e não percebo. Da vacinação de crianças contra uma doença de que não padecem à crença de que a vacina não permite eliminar nenhuma das “medidas” alucinadas em vigor, actualmente quase tudo o que é português me é estranho.

Em suma, eis a razão porque permanecerei sem data de retorno neste pedaço de território remoto e esquecido: porque é a maneira logisticamente menos complicada de não me sentir parte do desfile de patologias a que Portugal desceu. É possível que a minha decisão não adiante muito e que, conforme afirmava uma personagem do folclore lisboeta, somente transmita uma falsa sensação de segurança. Ainda assim, sou capaz de preferir a segurança ilusória à repressão certa, a distância voluntária à proximidade de malucos, a vida ao medo.”

Alberto Gonçalves, no “Observador”

sábado, 21 de agosto de 2021

 O Princípio da Precaução

 

«A lengalenga do “É preciso ganhar o Natal / a Páscoa / o Verão / a Ovibeja de 2034” e o refrão “As próximas duas ou três semanas serão decisivas” deveriam bastar para que um adulto sem perturbações mentais percebesse o prodigioso ridículo disto. Infelizmente, não bastam. O medo, a obediência e a exibição de virtude mantêm-se, à revelia das evidências e em prol da precaução. Ai, a precaução. A precaução teria evitado centenas de milhares de mortos em acidentes rodoviários: bastava nunca ter permitido a circulação de carros nas estradas nacionais. E evitado largos milhões de mortos em fatalidades diversas: bastava ter abolido a procriação. Hoje, inúmeros portugueses que não podem abdicar de ter nascido resolveram abdicar de viver.»

Alberto Gonçalves, no Observador

terça-feira, 17 de agosto de 2021

 "O Miguelito da JS: a revelação de um idiota"

 

"Não é novidade que a nossa vida pública está repleta de idiotas, e quem achar isto polémico é provavelmente um deles. O idiota distingue-se sobretudo pela coerência em expelir idiotices, que possui em quantidades abundantes e em princípio inesgotáveis. Mas não só: além do que diz, que é idiota, o modo como o diz também é idiota. Em casos frequentes, Deus os perdoe, até a cara com que o diz é idiota – quando diz e quando está calada. Será injusto pensar que o idiota prospera principalmente nos ramos da política e do desporto (e no comentário político e desportivo): sucede que as actividades em questão beneficiam de mais notoriedade que outras, as quais certamente terão inúmeros espécimes de apreciáveis, embora obscuros, idiotas. A história da Covid, por exemplo, trouxe à ribalta resmas de “especialistas” cuja idiotia passava antes despercebida em gabinetes sombrios.

É evidente que o idiota não nasceu ontem. Ou anteontem. Embora possa haver um aperfeiçoamento gradual das suas capacidades, não restam dúvidas de que o rematado idiota de hoje já mostraria sinais promissores na infância e na juventude. Um Marques Mendes ou um Fernando Medina não atingiram aquele grau de perfeição do dia para a noite. Uma Catarina Martins e um, ou dois, Eduardo Cabrita não caem do céu. Os “politólogos” que dissertam nas televisões têm decerto décadas de empenho em cima. E aqueles “especialistas” em virologia que há ano e meio alertam para o carácter decisivo “das próximas duas ou três semanas” treinaram as “valências” (e as sevilhas) durante toda a carreira, por sorte sem que alguém os ouvisse. A verdade é que nem sempre é possível apanhar o idiota nas fascinantes fases em que se forma e desabrocha. Porque em geral as televisões não exibem o processo, o cidadão comum não testemunha a transição da larva toscamente idiota para a borboleta orgulhosa e radiante de idiotia. É por isso que Miguel Costa Matos, deputado do PS e chefe da Juventude Socialista, é uma excepção que se saúda, e apetece regar com melaço quente.

Miguel Costa Matos é um meteoro a rasgar o vasto firmamento de idiotas caseiros. Aos 26 aninhos, está para a idiotia como Pelé aos 17 e T.S. Eliot aos 23 estavam para as respectivas profissões. À semelhança do que acontecia com estes, Miguel Costa Matos leva-nos a questionar se existem limites à evolução, para cúmulo numa carreira política, com margem de progressão bem superior ao futebol e à poesia. Se, no que toca a idiotas, o PS é uma formidável escola de formação, um prodígio imediata e fatalmente destaca-se.

Conheci – salvo seja – Miguel Costa Matos há uns meses. Um jornal perguntou-lhe se preferia Trump ou Xi Jinping, o prodígio preferia o déspota chinês ao presidente americano. Percebi logo: tínhamos idiota. E dos bons, abençoado pelo talento inato, por um percurso profissional alheio ao trabalho,  por uma fácies aparentada com a de Jorge Lacão e pelo ar de acólito que distingue alguns dos maiores idiotas nacionais. Notava-se que o rapaz ia longe.

E tem ido. Desde então, Miguel Costa Matos vem realizando o tipo de exibições de luxo que caracterizam os idiotas eleitos (e nomeados). Nunca falha: ele é contra a “desinformação” (leia-se é a favor da censura), ele é contra os “difusores do ódio” (e odeia gente assim), ele é contra o “racismo” (se as cores em causa forem as “correctas”), ele é contra o “machismo” (o que, corajosamente, o levou a pintar os lábios de vermelho para uma fotografia: nos idiotas refinados, às vezes os 26 anos equivalem a uma cabecinha de 5), ele é contra a carência de regras para as prostitutas (que escreve “prostitutx”, provando que as regras do português não o interessam tanto). E estes são os momentos banais de Miguel Costa Matos. Os momentos restantes são puro deslumbre.

Os aficionados da idiotia não se esquecem da recusa do idiota em aprovar o voto de pesar pela morte de Marcelino da Mata, optando por experimentar arrepios eróticos  com a barbicha do “Che”. Nem da crítica à Hungria por proibir cartilhas LGBT, enquanto o idiota exalta os palestinianos que enfiam homossexuais na cadeia. Nem da aflição do idiota com ameaças gravíssimas aos “direitos humanos” (a venda desregulada de haxixe, juro) e, em simultâneo, a devoção beata à quadrilha que enterrou a Constituição e aboliu as liberdades básicas. Nem da acusação ao governo de Pedro Passos Coelho, que o idiota acha responsável pelo empobrecimento de um país que o PS arruinara antes e volta a arruinar agora. Nem das declarações canalhas do idiota a propósito dos 4 anos dos incêndios de Pedrógão Grande: “Não esqueceremos. Que não deixemos que se repita” (até a gramática é idiota). Nem da reunião por “Zoom” em que o idiota participou com máscara., decerto por recear os vírus informáticos. Aqui há lata. Aqui há atraso de vida. Aqui há cegueira. Aqui há obediência. Aqui há ignorância. Aqui há pulhice. Aqui há boçalidade. Aqui há, enfim, os ingredientes essenciais ao idiota. Miguel Costa Matos não se limita a prometer: faz questão de cumprir. A obsessão do idiota com a cannabis não é inconsequente.

Esta semana, disseram-me que Miguel Costa Matos realizou na TVI uma das prestações mais ridículas desde qualquer declaração pública de Meryl Streep. Mandaram-me um vídeo com o resumo. Fiquei fascinado. Mesmo numa terra de muitos idiotas, e num partido com muitíssimos idiotas, o moço é um caso à parte. Em poucos minutos, sem um lampejo do que antigamente se chamava raciocínio, espirrou dezenas de patranhas tão delirantes, evangélicas e subservientes que envergonhariam um servente de Maduro. Não liguem às más-línguas que desvalorizam Miguel Costa Matos por apenas parecer idiota: ele é idiota, um idiota perfeito e um perfeito idiota, uma esponja de reverência e clichés com um futuro radioso num país que, por estas e por outras, não tem futuro nenhum."

Alberto Gonçalves, no Observador

quarta-feira, 23 de junho de 2021

 "Terraplanistas são eles"

"Antes da Covid, o “argumento” mais revelador da falta de argumentos e de neurónios de quem o utilizava era o da Rennie. Quando alguém confrontava um palerma com alguma coisa que lhe desagradasse, o palerma respondia imediatamente: “Toma Rennie que isso passa”, e a seguir retirava-se triunfante e seguro de que ganhara o debate. Num país cujo serviço de saúde não colapsasse à primeira oportunidade, o palerma ganharia a avaliação de uma junta de psiquiatras, mas esse é outro ponto. Aqui, o ponto é o recuso ao refluxo gástrico, vulgo azia, para encerrar uma discussão. Às vezes, o Kompensan substituía a Rennie, embora não houvesse massa encefálica que substituísse o ar morno na caixa craniana dessa gente. Bons tempos.

Em tempos de Covid, e contra todas as expectativas, o nível da “argumentação” conseguiu baixar. Hoje, a turba indistinta do “fique em casa”, do “confinamento” eterno e das máscaras permanentes é tão desprovida de razão que faz o pessoal da Rennie parecer sofisticado por comparação. O caso é particularmente irónico na medida em que, no lugar dos antiácidos, a nova estirpe de magos da retórica invoca a ciência. Ou melhor, aquilo que julga ser ciência, na verdade umas curvas estatísticas apresentadas em reuniões no Infarmed por matemáticos e veterinários desejosos de agradar ao governo. Não importa que as curvas sejam inúteis a descrever o presente e desastrosas a prever o futuro. Não importa que ninguém perceba a sensatez de trucidar uma economia débil a partir de curvas mal amanhadas. E não importa que as curvas se limitem a confirmar as conclusões previamente tomadas pelo dr. Costa e pelo prof. Marcelo: manter os cidadãos em clausura parcial, rebentar com a iniciativa privada e produzir mais dependência face ao Estado e às quadrilhas que o controlam.  Importa que, na cabeça dos tontos, as curvas e as desumanas restrições que delas “decorrem” são “ciência”. E importa sobretudo que, armados com solenidade “científica”, os tontos se sentem habilitados a insultar e perseguir quem deles discorda.

Quem sugerir que o estado de emergência não é adequado para lidar com uma doença que quase só afecta gravemente velhos é “negacionista”. Quem lembrar que teria sido decente proteger os velhos, em alternativa a prender a população em peso, é “terraplanista”. Quem notar que a evolução da Covid  não depende exclusivamente de “confinamentos” e regras abstrusas é “medieval”. Quem inventariar os países e as regiões em que a falta de “confinamento” e de regras abstrusas coabita com o decréscimo nos infectados e nos mortos é “conspiracionista”. Quem insiste em conviver com familiares e amigos é “bolsonarista”. Quem repara que o Brasil tem menos mortos “com” ou “de” Covid do que Portugal é “primitivo”. Quem não respeita as normas decretadas por governantes que não se dão ao respeito – nem respeitam as próprias normas – é “fascista”. Quem questiona a prepotência é “nazi”. Quem não sai de casa sem se disfarçar de iraniana ou assaltante de bancos é “anti-social”. Quem não reduz a vastidão do universo a um vírus é “inconsciente”. Quem recorda que a existência implica sempre riscos é “criminoso”. Quem previne que esta demência colectiva terá consequências muito feias para todos, excepto para os irresponsáveis que a provocaram, é “assassino” e indigno de merecer o proverbial ventilador no dia em que precisar de um.

Estamos nisto. É, literalmente, o mundo ao contrário.  De repente, a “ciência” viu-se apropriada por devotos da virologia de veterinários, da fancaria dos telejornais e da hipocondria do inquilino de Belém. Ou seja, por místicos que não fazem a mínima ideia do que é a ciência. Boa parte destes “cientistas” instantâneos até se diz de esquerda, o que os coloca logo no mesmo campeonato da credibilidade de astrólogos, cartomantes, homeopatas e cultores do Feng Shui. Muitos não sabem ler uma tabela estatística. Muitos são incapazes de alinhavar uma frase sem dois erros ortográficos e três de sintaxe. Muitos julgam que Steinmetz é um defesa do Dortmund. Mas nenhum abdica de uma ideia infantil acerca do que é ciência para fundamentar o seu dogmatismo.

Em circunstâncias normais, não custaria deixar os fanáticos a berrar sozinhos e assistir de bancada ao espectáculo. Afinal, há certa graça em ver em acção as principais características do método científico: a intolerância, a fúria e a vontade de enfiar blasfemos na cadeia ou na fogueira. A chatice é que as circunstâncias não são normais, e estes adeptos do pensamento mágico (sem a parte do pensamento) não contam apenas com a força da cegueira, que já é bastante. Para azar dos que prezam a civilização,  os fanáticos contam com a força literal, a dos senhores que legislam alucinações e a da polícia que as executa. A boçalidade, enfim, tomou por completo o poder, através dos que o ocupam e através dos que os apoiam. Salvo milagre, os factos estão condenados a subjugar-se a indivíduos que enchem a boca com ciência como antes a enchiam com liberdade, embora desconheçam a primeira e detestem a segunda. Terraplanistas, negacionistas e primitivos são eles."

                                                                                                                       Alberto Gonçalves, no "Observador" de 27 de Março

terça-feira, 28 de outubro de 2014

“Portugal e o futuro”

“(…) Excluindo os próprios envolvidos, os compadres, os amigos de ocasião e os fanáticos, ninguém confia no governo. De trapalhada em trapalhada, a pedir desculpas ou paciência, o bando liderado pelo Dr. Passos Coelho arrasta-se como o Benfica na "Europa", rumo ao desastre final. Dizer que em três anos o bando refreou o défice à custa da receita é a única coisa parecida com um elogio que estes senhores suscitam. O resto, a austeridade sem retorno ou uma desmesurada carga fiscal acompanhada por zero reformas dignas do nome, provou que nem o machado da troika corta a raiz do pensamento pátrio.
Excluindo os próprios envolvidos, os compadres, os amigos de ocasião e os fanáticos, ninguém confia na oposição. Especialista em intercalar o silêncio com as mais descaradas asneiras produzidas para cá de Caracas, o Dr. Costa, rodeado por puros malucos e oportunistas de carreira, já fareja o poder e ameaça usá-lo com a voracidade dos famintos. Em 2014, continua a haver malária, esclavagismo e, no que nos toca de perto, quem defenda o "investimento" público e o crescimento por decreto sem corar de embaraço.
Mesmo estafados, certos clichés do Parque Mayer, incluindo o do "tacho", merecem recuperação: partidos à parte, toda esta gente luta por um objectivo comum, o de alimentar o Estado de modo a dispor dele. A novela da PT em curso é exemplar, principalmente se atendermos à procissão de vultos que agora reclama a respectiva nacionalização e à procissão de familiares dos vultos que antes conseguiu lá emprego.
Existem diferenças? Algumas, que só importarão aos picuinhas: o PSD disfarça, o PS assume. O PSD explora a absurda aura "liberal" que lhe colaram, o PS jura-se de esquerda. O PSD nega o evidente assalto ao contribuinte, o PS promete-o com orgulho. O PSD mata com álibi, o PS esfola por missão. O PSD finge salvar o país da ruína, o PS não distingue a ruína da salvação. E o povo, pá?, perguntava uma cantilena. O povo, quando não conta os cêntimos, saltita entre a crendice e o desnorte, a resignação e o berreiro, a esperança e a realidade. Mas, quando conta os cêntimos, o povo pressente que o pior ainda não chegou.”
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”

terça-feira, 22 de julho de 2014

O Costa, da Parvónia


“A cada semana, António Costa revoluciona a ciência económica. Primeiro foi a tese de que a riqueza é preferível à austeridade, inovadora aplicação na macroeconomia do princípio de Maria Antonieta. Depois, descobriu que o problema não é o excesso de licenciados, mas a falta de empregos para licenciados (criam-se os empregos e a chatice fica resolvida). Agora, explicou a uma embevecida plateia de sindicalistas que "não há crescimento sustentável com endividamento, mas também não há crescimento sustentável com empobrecimento", sentença que se comenta sozinha.
Se não se aproximassem as férias, o Dr. Costa ainda estaria a tempo de dizer que: 1) o investimento público é melhor do que o privado excepto nos casos em que o investimento privado é melhor do que o público; 2) o Estado social é sustentável desde que saia baratinho aos cidadãos; 3) Portugal não deve sair do euro enquanto os euros entrarem em Portugal; 4) pelo menos na perspectiva dos destinatários, os salários altos são preferíveis aos salários baixos; 5) o Pato Donald é um boneco.
Brincadeiras à parte, o que é isto? Não é de agora que Portugal não se pode queixar em matéria de produção de políticos absurdos. Mas entre as nulidades sem uma ideia na cabeça e o Dr. Costa, em cuja cabeça fervilham centenas de ideias desconchavadas, vai uma diferença considerável. Já nem falo da tentativa de vender o homem a título de salvador da pátria: falo do homem propriamente dito e da deprimente comparação com aqueles a quem sonha suceder. Ao pé do Dr. Costa, Passos Coelho passa por um modelo de estadista, Sócrates por um sujeito quase ponderado, Santana por um governante responsável, Barroso por um gigante do pensamento, Guterres por um paradigma da racionalidade financeira e Cavaco, ele sim, pelo salvador da pátria que nunca foi. Perante o Dr. Costa, até o jovem António José Seguro parece habitar o mesmo planeta que os restantes mortais.
Em suma, o Dr. Costa é um embaraço ambulante. Logo, provavelmente será depois do Verão o líder do PS e, se os amigos o mantiverem calado entretanto, hipotético primeiro-ministro no ano que vem. Um pessimista vê à distância e, na lógica do "depois de mim virá", tende a imaginar que espécie de calamidade pode aparecer ao País após o Dr. Costa. Um optimista desconfia que, após o Dr. Costa, é improvável haver País.”
Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Das praxes...


«Não vou comentar os acontecimentos do Meco, de uma escala apesar de tudo rara ou inédita. Mas, dado o clima da semana, julgo ser obrigatório escrever sobre as "praxes" que, ao que consta, provocaram os acontecimentos. Pior ainda, não consigo fugir ao consenso geral: mesmo quando não são propensas ao perigo, as "praxes" são uma manifestação de idiotia e uma explicação para o nível geral do nosso ensino superior.
As reportagens sobre os jovens afogados vão mostrando porque é que tantas criaturas terminam a licenciatura sem uma vaga ideia do respectivo conteúdo, de resto frequentemente superficial. O universo das "praxes" é um currículo à parte, repleto de hierarquias, estatutos, símbolos de honra e desonra, códigos de conduta e normas de vestuário que os leigos devem aprender com zelo, sob pena do que calha, incluindo, em situações extremas, da morte. Não admira que, enquanto se dedicam às ordens do "Dux" (?), os "estudantes" não tenham vagar para o propósito oficial das universidades, as quais assistem impávidas à troca do saber especializado pela iniciação paralela à reverência, à prepotência, à desumanização, ao colectivismo e, afinal, à cretinice. Se a aversão à liberdade é uma marca nacional, o desejo de pertença, uma discutível virtude, realiza-se aqui da maneira mais primária.
"Aqui", onde? É justo distinguir entre universidades com e sem aspas. O peso das "praxes" é menos relevante nas instituições em que os estudantes, por incrível que pareça, têm de estudar. A importância da capa e da batina cresce em função da insignificância da instituição, o que, em Portugal, equivale a dizer que as "praxes", se levadas ao limite da sua essencial selvajaria, são sobretudo característica das "universidades" particulares, por cá quase uma contradição nos termos.
No mundo civilizado, as melhores escolas são, como seria de esperar, as que funcionam à margem do Estado. No mundo que nos tocou em sorte, em que o ensino público já é o que é, a iniciativa privada foi incapaz de criar um simulacro - ou, vá lá, uma caricatura - de Yale ou Harvard. Em vez disso, ergueu uns barracões sem dignidade nem docentes que, grosso modo, encheu com o refugo do numerus clausus. Nesses lugares, as "praxes" fingem uma tradição e servem de currículo. Por regra, a coisa não vai além da trapaça; ocasionalmente, chega à tragédia. Em ambas as circunstâncias, à semelhança dos rapazes e raparigas mortos na praia, as diversas "Lusófonas" são um caso de polícia.»
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A higienista

“A ministra Assunção Cristas garante que a ideia de limitar por decreto o número de animais domésticos é apenas uma proposta que anda há sete anos a ser estudada "ao nível [o português é o da senhora] dos serviços do Ministério" da Agricultura [MA], processo no qual "têm sido ouvidas várias entidades, que têm dado contributos muito sérios".
Ou seja, o caso é ainda pior do que constou. Não vou perguntar o que se entende por "contributos muito sérios" num tema que tresanda a circo, mas uma coisa é uma governante com conhecidas inclinações socialistas abraçar tamanha enormidade. Outra coisa, bastante mais assustadora, é a enormidade ter nascido na cabeça de socialistas assumidos e entretido, durante quase dois mandatos, um sortido indeterminado de funcionários ministeriais, além de especialistas avulsos. Lidar com a demência de uma criatura é tarefa complicada; enfrentar a demência de um sistema é tarefa desumana.
Não vale a pena repetir que a quantidade de cães, gatos, hamsters e cágados que os cidadãos apascentam em casa é assunto que só aos próprios - e aos condomínios, a existirem - diz respeito. Talvez valha a pena pensar se, em prol da famosa higiene pública, as restrições não se deveriam aplicar justamente aos tiranos pequeninos que dedicam as vidas a regulamentar a vida do contribuinte que os patrocina. Apesar das reduções na última década, o MA, por exemplo, emprega seis mil indivíduos, cifra excessiva na medida em que a instituição serve exclusivamente para castigar as pessoas pelas decisões que lhes competem e premiá-las pelos fenómenos que lhes são alheios: abrigar três cachorros (ou promover uma campanha de descontos em supermercados) dá direito a multa, sofrer três meses de chuva suscita indemnização.
Para protagonizar esta comédia, a senhora ministra, sozinha, chegaria e sobraria. Sobraria porque li algures que a dra. Assunção possui quatro filhos, notoriamente um excesso se, ao contrário do que costuma suceder com os bichos, cada fedelho implicar berreiro nocturno (ou diurno), perturbação da ordem e meses a fio de licença de parto, subsidiada por todos nós. Mesmo imaginando que a estimável prole da dra. Assunção esteja isenta de tais desvarios, a lei é cega e geral. Qual lei? A que, um belo dia, outro tirano pequenino, inspirado por uma longa tradição de abusos, se lembrará de propor. Por enquanto, aqui fica o meu contributo muito sério. Se quiserem um contributo a brincar, financiem-me durante sete anos e aguardem."
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”

sábado, 13 de abril de 2013

As novas oportunidades de velhos oportunistas

«Sem pompa nem circunstância, encerraram os Centros Novas Oportunidades (NO). As NO responderam às carências do País em matéria de certificações sem responder às carências do País em matéria de aprendizagem. Ou seja, as pessoas entravam formal e tecnicamente desqualificadas nos espaços de formação e, decorridos meses, deles saíam apenas tecnicamente desqualificadas. Pelo meio, a troco de "histórias de vida" e conversa fiada, ganhavam um papel que lhes garantia a posse do 9.º ou do 12.º ano. Mil e oitocentos milhões de euros depois, 400 mil portugueses são os confusos proprietários do tal papel e os candidatos ao desemprego ou a profissões desvalorizadas que sempre haviam sido. Ao contrário do que alguns charlatães chegaram a afirmar, criticar as NO não significava insultar os incautos que por elas passaram: ao arregimentar incautos para efeitos de propaganda, as NO eram o insulto. E a abolição de um insulto é uma boa notícia.

Estranhamente, essa notícia não mereceu os festejos suscitados por uma segunda notícia feliz e quase simultânea, a da demissão do ministro Miguel Relvas, que obtivera uma licenciatura à custa do exacto tipo de equivalências imaginárias que fundamentavam as NO. Mais estranho é que muitos dos que defendiam as NO sejam os mesmos que, com alguma razão e escassa legitimidade, acharam o processo do "dr." Relvas um atentado à democracia. Se o processo do "dr." Relvas é misterioso, não se compara ao mistério das reacções que fomentou.
Uma reacção típica consistiu em afirmar que a demissão pecou por tardia. Nada a obstar: por lealdade, necessidade ou pura dependência, o dr. Passos Coelho deixou que os estragos provocados pelo currículo "académico" do "dr." Relvas se prolongassem indefinidamente, com custos que o Governo dispensava. Apesar disso, o "dr." Relvas lá acabou por sair, o que nem sempre se pode dizer de governantes com licenciaturas igualmente duvidosas que se agarraram ao poder e sobreviveram à revelação das trapalhadas universitárias.
Outra reacção à saída do "dr." Relvas indigna-se com Nuno Crato, que alegadamente guardou por dias ou semanas o relatório da Inspeção-Geral da Educação e Ciência acerca do famoso canudo. Os indignados esquecem-se de que é inédito um ministro concordar com uma decisão que coloca em causa um seu colega. Sobretudo esquecem-se de que o antecessor desse ministro contemplou indiferente uma aldrabice similar à do "dr." Relvas (indiferente, vírgula: fechou a universidade em questão sem beliscar os respectivos beneficiados).
Uma terceira reacção trata de esclarecer que o "dr." Relvas não era, cito, "um ministro qualquer", logo a confirmação das habilidades praticadas na Lusófona abala gravemente o Governo. Acho óptimo que abale, ainda que ache esquisito o facto de governos anteriores escaparem ilesos à revelação de habilidades semelhantes praticadas por um membro que também não era um ministro qualquer: era o primeiro.
Entre as donzelas ofendidas com a novela do "dr." Relvas há inúmeras galdérias em novelas passadas. Hoje, puxam da virtude com o zelo com que ontem disfarçavam o vício. Levá-las a sério é reduzir Portugal a uma anedota. Como o "dr." Relvas, mas não só o "dr." Relvas.»
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias” de 7 de Abril

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Ainda sobre a sodomização da camorra…

Na sequência do texto indignado do ex-Secretário de Estado da Cultura sobre a idiotia de Paulo Núncio querer, vertendo em norma jurídica, obrigar o cidadão a pedir factura de todas as compras efectuadas, Alberto Gonçalves, cronista no Diário de Notícias, com a frontalidade e humor que o caracterizam, escreve:

“Os resultados do nosso trabalho já são extorquidos em quantidade suficiente e segundo métodos impossíveis de contornar. É da mais elementar lucidez resistir, dentro do possível, a extorsões adicionais. Não vou ao ponto de, à semelhança de Francisco José Viegas, sugerir que se mande os empregados do fisco "tomar no cú". O Francisco exagera nos brasileirismos: os verbos "levar" ou "apanhar" chegam e sobram para um Governo com aura liberal, hábitos socialistas e processos napolitanos.“
Apache, Fevereiro de 2013

domingo, 20 de janeiro de 2013

“Quatro por cento”

“Segundo um estudo da seguradora Zurich, 96% dos portugueses não acreditam nos políticos. Como agora é habitual, estes dados foram apresentados com preocupação e imputados à austeridade. Basta espreitar um noticiário televisivo ou folhear um jornal para perceber que, no caldo ideológico vigente, a austeridade está na origem de todos os fenómenos ocorridos no país, desde os suicídios ao abandono de cães, passando pelos assaltos à mão armada e pela decadência do Sporting.
Fora das alucinações em voga, a notícia merece aplausos. Descrer da classe política não é, ao contrário do que a própria classe gosta de sugerir, meio caminho andado para o advento de uma ditadura, mas o primeiro passo para a consolidação de uma sociedade livre. As ditaduras erguem-se sobre a adesão excessiva aos "salvadores" nascidos justamente da veneração e da fé cegas. Numa democracia autêntica, criatura nenhuma depositaria nos políticos mais confiança do que a estritamente indispensável. Os políticos são um mal necessário, que se tolera com a resignação dedicada a uma gripe em Fevereiro. É óptimo que os portugueses suspeitem dos políticos. É trágico que, provavelmente, isso seja mentira.
Uma coisa é resmungar em inquéritos contra os senhores que mandam. Outra é supôr que os resmungos traduzem a capacidade de compreender que os senhores que mandam, quaisquer que sejam, constituem o problema e não a solução. Infelizmente, palpita-me que as pessoas não criticam o poder porque o poder é por definição criticável. Criticam-no porque não recebem dele tudo o que desejam. O poder, em suma, não satisfaz as expectativas, e a mera existência de expectativas, no sentido em que os de "baixo" delegam aos de "cima" a orientação das suas vidas, é flagrante sinal de atraso.
Entre parêntesis, note-se os extraordinários 4% de indivíduos que, íntima e publicamente, proclamam acreditar nos políticos. Antes de nos espantarmos com tamanha demonstração de primitivismo, convém somar os eleitos para cargos nacionais e locais, os adjuntos, os assessores, os secretários, os motoristas, os compinchas, os parceiros de negócios e todos os que sonham atingir um dos postos anteriores. O número parece plausível.”
Alberto Gonçalves, no "Diário de Notícias"

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“Branca de Neve procura emprego”

“É provável que uma hipotética saída da União Europeia agravasse ainda mais a nossa situação económica. Mas talvez melhorasse a nossa saúde mental. No meio de uma crise que coloca a sua própria existência em risco, o Parlamento Europeu (PE) dedica-se a demonstrar que não se perderia muito: não satisfeito por possuir uma absurda Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros, o PE permite que a dita comissão se alivie de palpites acerca de matérias que sempre os dispensaram.
Até agora, essa destravada fraternidade tentava interferir no mundo real e entretinha-se a propor quotas em empresas e delírios assim. Agora, soube por Helena Matos (blasfemias.net), a referida Comissão avança para o mundo da ficção e quer abolir das escolas ou no mínimo temperar a influência das obras literárias infanto-juvenis que atribuem papéis "tradicionais" aos elementos masculinos e femininos da família. Livrinho em que o pai saia para o trabalho e a mãe fique a cuidar da prole irá, se a coisa vingar, directamente rumo ao índex dos eurodeputados.
O índex será vasto. Não estou a ver nenhum clássico da literatura do género em que a personagem do marido passe os dias a mudar fraldas e a da esposa assuma um lugar de relevo na sociedade. Mesmo na "Branca de Neve", que está longe de representar um agregado familiar retrógrado (conheço pouquíssimas senhoras que coabitem em simultâneo com sete cavalheiros, para cúmulo de estatura alternativa), a verdade é que a heroína trata das arrumações caseiras enquanto os seus sete parceiros labutam nas minas. E quanto a Huckleberry Finn, criado na ausência da mãe e na presença de um pai alcoólico, erradica-se ou não? E os órfãos de Dickens? E, uns degraus abaixo, os pobres sobrinhos sem tia da Disney? Além disso, a Comissão dos Direitos da Mulher e Etc. é omissa no que toca às fábulas. Se, por exemplo, é indesmentível que, ao invés da cigarra, a formiga trabalha como uma desgraçada, nem Esopo nem La Fontaine sugerem que a dita seja fêmea e unida pelo matrimónio a um formigo que colabora nas tarefas do lar e respeita o "espaço" da companheira. Que obras, em suma, corresponderão aos requisitos de igualdade? Há uma imensidão de dúvidas.
Por sorte, há um PE recheado de certezas, que reivindica à Comissão Europeia legislação capaz de regulamentar (um verbo predilecto) o equilíbrio conjugal nas histórias para petizes - no papel e também no cinema, na televisão, na publicidade e onde calhar. O argumento (digamos) é o de que os "estereótipos negativos de género" minam a "confiança" e a "auto-estima" das jovens, limitando as suas "aspirações, escolhas e possibilidades para futuras possibilidades [a repetição não é gralha] de carreira". Quem fala assim não é gago: é semianalfabeto na medida em que escreve com os pés, arrogante na medida em que submete a liberdade criativa à engenharia social e um bocadinho maluco na medida em que confunde a fantasia com o quotidiano. (...) “
Alberto Gonçalves no “Diário de Notícias”

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

“Um curso com saída”

“Em vez de frequentar licenciaturas inúteis ou de fingir que frequentam licenciaturas inúteis, os jovens pragmáticos vão directamente ao assunto e inscrevem-se na Universidade de Verão do PSD. À superfície, a brincadeira não diverge muito dos acampamentos do Bloco de Esquerda, tirando as tendas, a iconografia "revolucionária", o haxixe consumido pelos participantes e o estado geral de alucinação da maioria dos oradores. No fundo, porém, ambas as iniciativas visam o mesmo: produzir políticos de carreira. É verdade que o grau de implantação do PSD e a rotatividade das respectivas direcções auguram uma carreira mais promissora do que a rígida pequenez do Bloco, mas o ponto não é esse.
O ponto é a existência de centenas (ou milhares?) de meninos e de meninas capazes de trocar os prazeres da idade e da estação por uma semana de clausura, a ouvir oradores de gabarito diverso, a estabelecer os contactos "certos" e, sobretudo, a preparar o seu futuro. Não importa muito se o fazem por fanatismo ideológico ou cinismo: o facto é que o fazem, e isso só nos deve angustiar.
Não sou de mitificar as lideranças políticas já reformadas, que à distância parecem sempre melhores do que na realidade foram. Em contrapartida, não me custa nada lamentar a monumental pelintrice das lideranças actualmente em funções. Mal por mal, antigamente ainda passava pelas cúpulas partidárias o ocasional portador de um percurso profissional realmente exterior aos partidos e à influência dos partidos. Hoje, não. Se retirarmos a política aos políticos de agora, ficamos com uma multidão de rematadas e disciplinadas nulidades sem serventia no mundo real excepto, talvez, no sector da arrumação de automóveis.
Dizer que o problema do país são os maus políticos é tão redundante quanto sugerir que Haydn tinha jeito para a música: os políticos são maus porque nunca souberam ser outra coisa, sobretudo uma coisa sujeita a responsabilidades e que tomasse decisões sem envolver o dinheiro alheio. É por isso que, na sua franqueza, as universidades (e os acampamentos) de Verão chocam um bocadinho, embora um bocadinho menos do que a disseminada ilusão de que compete a essa gente aperfeiçoar as nossas vidas. Contas feitas, a única aptidão de tais espécimes é a criação de emprego: o deles.”
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Do Acordo “horto-gráfico” (4)…

«É fascinante que um pequenino bando de ociosos tenha decidido corromper a língua de milhões. O fascínio esvai-se quando se percebe que os ociosos atingiram os intentos. O Acordo Ortográfico, criação de arrogantes com uma missão, é oficial e está aí, perante a complacência dos poderes públicos em princípio eleitos para defender o país e não para o enxovalhar deliberadamente.
Até hoje não se percebe a serventia do dito Acordo. A partir de hoje, também não se irá perceber. Ao que consta, a ideia seria “unificar” a escrita de todos os países de expressão portuguesa. Naturalmente, ficou muito longe disso. Ainda que não ficasse, onde estaria o ganho? Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é.
Em abono dos Malacas Casteleiros e restantes conspiradores do Acordo, é verdade que semelhante aberração não caiu do céu. A repugnância que esses senhores dedicam às palavras, e que os leva a esventrá-las sem escrúpulos, encontra um ambiente hospitaleiro na sociedade em geral, a começar pelos políticos que avalizaram a vergonha lexical em curso. Dificilmente os sujeitos cuja retórica é um amontoado de “alavancagens” e “empoderamentos” travariam a degradação do vocabulário.
E o resto não melhora. Da televisão às SMS, do Facebook à escola, pouco, quase nada, nos lembra que comunicamos no mesmo idioma do referido Pessoa. Assistir a um “telejornal”, ler um texto produzido pelo universitário médio ou espreitar os padrões do romance contemporâneo indígena é descer a jargões e graus de analfabetismo abjectos, com ou sem "c". Porém, se os maus-tratos à língua já eram habituais, não eram obrigatórios. E essa é a diferença entre temer pela vida de um moribundo e assinar, oficial e urgentemente, o respectivo óbito.»
Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Guimarães, capital europeia de uma certa cultura

«Descansem os que viam em risco a posição de Portugal na Europa. O risco sumiu, e não foi graças a empréstimos, troikas, austeridade, impostos, rigor ou fenómenos afins: bastou organizar em Guimarães a Capital Europeia da Cultura para que provássemos ser europeus de pleno direito.
Pelo menos é essa a opinião de Jorge Sampaio, ex-presidente da República e actual presidente do Conselho Geral da Fundação Guimarães 2012, funções que lhe garantiam 14 300 euros mensais e que a demagogia da crise terá posteriormente reduzido para uns dez mil, insuficientes para as despesas correntes de um chefe de Estado na reforma, mas suficientes para o dr. Sampaio afirmar que a cultura não é um desperdício: é um investimento. Já João Serra, presidente da Fundação citada, detentor de salário idêntico e por miraculosa coincidência antigo chefe da Casa Civil do dr. Sampaio, vai mais longe e acrescenta que o evento é um "símbolo contra a negação, o cepticismo e a desistência". O dinheiro leva-nos a dizer frases tão ocas quanto extraordinárias.
Fascinante é quando as frases se dizem de borla. Na abertura do evento, Cavaco Silva desejou que Portugal possa projectar-se de novo a partir de Guimarães, como na fundação da nacionalidade. Pedro Passos Coelho declarou que o valor da cultura não deve ser medido pelo Orçamento do Estado. E Durão Barroso explicou que a cultura e actividades associadas criam emprego, o que, a julgar pelos exemplos acima referidos, dificilmente pode ser negado.
A verdade é que, além de fogo-de-artifício e de uns catalães a empurrar um boneco gigante, a inauguração da Guimarães 2012 apresentou dois espectáculos curiosos. O primeiro consistiu no desfile de clichés destinados a justificar, quase desesperadamente, que os gastos na cultura são por definição sábios, e que a pequena fortuna "investida" por um país falido em irrelevâncias a realizar num concelho particularmente pobre não é um absurdo nem um insulto.
O segundo espectáculo consistiu na enésima exibição do conceito de "cultura" entendida na acepção agrícola, enquanto coisa que se "incentiva", "estimula" e "impulsiona". Por pudor, ninguém reparou que na extremidade correcta do incentivo, do estímulo e do impulso está somente um punhado de beneficiários, e que na extremidade errada estão milhões de cidadãos, os quais não puderam dizer nada sobre Guimarães 2012 e ainda por cima a pagaram.»
Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A frase da semana

“O Dr. Seguro (…) promete estatismo a um país arrasado pelo estatismo assumido do seu partido e hoje governado pelo estatismo envergonhado dos partidos ditos à direita.”
Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Em jeito de (primeiro) balanço (2)

“Confesso que nos primeiros dias do Governo aguardava com expectativa os anúncios de diminuição da despesa pública. Agora aguardo-os com pavor. De cada vez que um ministro ameaça reduzir os gastos do Estado acaba a aumentar os gastos do contribuinte com o Estado. Há dias, Vítor Gaspar prometeu "cortes brutais" e apresentou um reforço dos impostos (na electricidade e no gás). O primeiro item ficou mais uma vez adiado para um futuro vago, afinal o nosso. Corre por aí que as sumidades que nos tutelam precisam de tempo. Desgraçadamente, não temos nenhum. Perdemos seis anos a ver as sumidades precedentes arruinarem o país com frontalidade. Não convinha ver as sumidades actuais prolongarem dissimuladamente a ruína.”
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

De erro em erro

«O dr. Passos Coelho jurou há um mês que o Governo não gozaria de férias para que, cito, "o essencial das decisões a aplicar possam ser aplicadas". Descontado o erro de concordância, resta o erro da previsão: o Governo entrou de férias. O dr. Passos Coelho anunciou as suas no Facebook, presumindo, talvez acertadamente, que os cidadãos não têm mais o que fazer do que brincar nas ditas redes sociais. O dr. Passos Coelho não se limitou ao anúncio, mas publicou no Facebook toda uma mensagem "oficial", intitulada "Uma pequena reflexão de Verão" e destinada às "Caras amigas e amigos".
Descontado o erro de concordância, resta o uso aparentemente aleatório de iniciais maiúsculas. O dr. Passos Coelho refere o "nosso Grande Desafio como nação e como povo" como se o "Grande Desafio" fosse uma entidade autónoma e reconhecida no notário, refere a "Sociedade Portuguesa" como se o conceito beneficiasse de estatuto formal e refere "que a instabilidade no sistema Financeiro Europeu e Americano são travões para um percurso já de si cheio de sacrifícios", como se de facto não soubesse escrever.
Descontado o erro de concordância, resta o tom simultaneamente épico e vazio da pequena reflexão. A pensar no Algarve, o Dr. Passos Coelho espraia-se por clichés grandiloquentes, desde "Este é o momento!" até "olhar o futuro com confiança e optimismo", passando por "somos um povo de vencedores que nos agigantamos perante as maiores adversidades".
Descontado o erro de concordância, resta a sensação de que tudo isto já havia sido dito e de que o oposto de tudo isto já havia sido feito. Inevitavelmente, o fervor nacionalista irrompe sempre que a nação rasteja: se olharmos o futuro, aquilo que vemos a agigantar-se é o desastre, destino que dificilmente será evitado por um primeiro-ministro débil na palavra e nas palavras. Para cúmulo, meia dúzia de semanas bastaram para que, à semelhança do velho, o novo poder tomasse cada dissidência à conta de manifestação anti-patriótica, pressuposto que, a ser respeitado, faria que ainda fôssemos castelhanos.»
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias” de 11 de Agosto

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Um Programa em “politiquês” de e para “fraquinhos no discernimento”

«Mesmo que já se tenham passado uns tempos sobre a respectiva divulgação, confesso ainda não ter opinião sobre as medidas incluídas no programa do Governo. Por enquanto, continuo abismado com o idioma em que as medidas foram escritas. É verdade que houve ligeiros progressos face ao programa do Governo anterior. É também verdade que, dado o analfabetismo terminal de que esse documento padecia, isso não significa muito. Assim por alto, temos o vocabulário encaracolado, inventado ou apenas ridículo. "Âmbito", se quisermos citar um exemplo clássico de parolice, aparece 30 vezes. "Ao nível" aparece 17 vezes. "Em termos de", 5 vezes. "Nomeadamente", 22 vezes. "De excelência", 5 vezes. "Optimizar" ou "optimização", 12 vezes. "Sustentabilidade", 34 vezes. "Implementar" ou "implementação" 34 vezes. "Contratualização", 7 vezes. "Agilizar", 9 vezes. "Reafectar", uma vez. A seguir, temos os indispensáveis estrangeirismos: "cluster" (10 menções), "outsourcing" (2), "start-ups" (1) e I&D (10). Nas frases, há as campeãs da redundância ("O valor incomensurável da dignidade da pessoa humana"), há conceitos herméticos ("atlas desportivo interactivo e actualizado"), há aspirações patetas ("Construir cadeias de valor de suporte ao tecido empresarial do cluster (a montante e a jusante)"), há trechos mancos ("E o Governo assume igualmente que esta dimensão de articulação entre áreas cujo inter-relacionamento é determinante o incremento da segurança estará sempre no centro das suas preocupações") e há sonhos hiperbólicos ("Eleger o ensino do português como âncora da política da diáspora"). A âncora é dispensável: a julgar pelas citações acima, já seria óptimo que, em lugar de o lançar ao fundo, alguém aprendesse português suficiente para passar nos pífios exames do liceu e, de caminho, redigir cento e tal páginas em língua de gente. Não é por nada, mas custa acreditar que sujeitos incapazes de alinhavar umas ideias conseguirão passar as ideias à prática e, como se impõe, reformar o país. Resta que a turbulência externa talvez torne o programa do Governo inconsequente e que a falta de vontade interna talvez mate o programa à nascença. Dos males, o menor.»
Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Primeira cavadela, primeira minhoca

“Todos os portugueses sabem que, excepto pelas costas, não se diz mal dos amigos e conhecidos. Felizmente, devo ter uma costela estrangeira e não me sinto obrigado à regra. Quando o novo secretário de Estado da Cultura, pessoa inteligente e óptima companhia, se estreia na função a prometer que o Acordo Ortográfico (AO) será "implementado" em 2012 nos "documentos oficiais e nas escolas" dado ser "um caminho sem retorno", eu gostaria de lembrar ao Francisco José Viegas que caminhos sem retorno também eram, ou são, o TGV, o aeroporto de Alcochete, a bancarrota, a gripe suína e o declínio do Belenenses. O trabalho de um governante consiste, suponho, em tentar contrariar as desgraças ditas inevitáveis. Aceitá-las de braços caídos tende um bocadinho para o fácil e talvez não justifique o salário. Ainda por cima, às vezes sai mais caro, em esforço e em dinheiro, aceitar as desgraças ditas inevitáveis do que impedi-las. Na questão do AO, por exemplo, parece-me menos complicado deixar as coisas como estão do que proceder à inutilização de toneladas de papel e à revisão de gigabytes de informação "virtual" em nome de um compromisso pateta e de enigmática serventia. Vasco Graça Moura, aqui no DN, já aludiu ao prejuízo material que o AO implica, ao tornar obsoletos manuais escolares, dicionários e livros em geral. Se o objectivo do Governo eleito fosse torrar fortunas em disparates, a "implementação" do AO viria a calhar. Sucede que o momento é, ou assim nos garantem, de austeridade, por isso dói ver aumentos de impostos contrabalançados por desperdícios quantitativamente pequenos e simbolicamente desmesurados. Pior que tudo, além de tonto nos princípios e dispendioso nos meios, o AO é horroroso nos fins.”
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias