“Veja o leitor o que pode acontecer a um cidadão incauto. A revista Playboy manifestou o desejo de me entrevistar. Como todas as pessoas que não têm nada para dizer, gosto muito de ser entrevistado. Por isso, aceitei. E devo ter dado uma entrevista de tal forma sensual que a Playboy resolveu colocar a fotografia do meu rosto apolíneo na capa. Sim, sim: na capa. No sítio em que costuma estar uma senhora nua, estou eu sozinho. Como sempre costuma acontecer, assim que eu entro as senhoras nuas desaparecem. Sou, portanto, a capa da revista Playboy deste mês. Quando me fui deitar, era um pacato pai de família; quando acordei, era a Miss Dezembro. Uma coisa é eu ser um humorista; outra é a minha vida ser ridícula. Deus sabe quanto tenho tentado separar as águas, mas tem sido quase sempre em vão.
Não sei quantos leitores perdeu a Playboy com esta capa, mas posso garantir que perdeu um: eu não compro aquilo, de certeza. Por um lado, é óbvio que as fotografias foram submetidas ao tratamento do photoshop e outras ferramentas de correcção de imagem: o meu nariz tem bastante mais celulite do que parece ali. Por outro, impressiona-me que este seja, até agora, o maior sinal de que o momento que vivemos é mesmo grave. A Playboy, especialista na divulgação de mulheres nuas, publica, este mês, um homem (se isto é um homem) vestido. É bem verdade que a crise não é apenas financeira - é também uma crise de valores. Esta interrupção súbita e sem aviso da exploração do corpo feminino é, evidentemente, imoral. Eu sempre gostei de explorações. E gosto mais ainda do corpo feminino, um gosto que é exacerbado pelo pouco contacto que tenho com ele. Ver-me agora envolvido na suspensão das actividades exploratórias é uma mancha de que a minha biografia não precisava.
A Playboy justifica o despautério com o facto de me ter eleito homem do ano, uma ofensa que 2009, por muito mau que tenha sido, não merecia. Significa isto que, no espaço de um mês, fui distinguido pela ILGA e pela Playboy. O mundo homossexual e o mundo heterossexual deram as mãos e convergiram na necessidade urgente de me agraciar. Que se passa com o mundo? Homossexuais e heterossexuais têm tido, desde sempre, discordâncias, conflitos, tensões. Quando finalmente concordam, dá isto. É bom que os apreciadores da paz e da concórdia façam uma reflexão profunda sobre as ideias que defendem. O que em teoria é bonito, na prática pode ser grotesco.
Resta a curiosidade de saber como vai este número da Playboy trilhar o seu caminho. Que mecânicos irão buscar o martelo e os pregos para pendurarem a minha entrevista na parede das suas oficinas? Que adolescentes se entusiasmarão, no recato dos seus quartos, com as minhas opiniões sobre o sentido da vida? E, a mim, sobra-me o consolo amargo de, finalmente, poder dizer que já tive intimidades com uma capa da Playboy.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira (10 de Dezembro)
A ilustrar este texto, poderia colocar a capa da Playboy de Dezembro, mas como o frio, para já, resolveu o problema das formigas no açucareiro, em nome da “reflexão profunda” a que o Ricardo apela optei antes por uma foto da GQ de Novembro.
[Helena Costa]