“Aconteceu esta
semana, na praia, mesmo à minha frente. Um desempregado estava a nadar e foi
apanhado por uma onda. Começou a gritar por auxílio mas nenhum dos outros
banhistas o acudiu, fosse por medo ou por desejo de contribuir para a
diminuição dos números do desemprego (era o meu caso, pois sou ao mesmo tempo
corajoso e patriota). Foi então que o artigo 227 da Constituição da República
Portuguesa se lançou ao mar. Parecia um polvo, a nadar vigorosamente com as 22
alíneas do seu ponto número 1. Puxou o homem para a margem e reanimou-o - para
surpresa de todos, não só porque nunca tínhamos visto a Constituição fazer
fosse o que fosse pelos desempregados, mas também porque não esperávamos que a
iniciativa partisse do artigo consagrado aos poderes das regiões autónomas.
O
leitor mais perspicaz já estará desconfiado de que o que acabo de relatar
talvez seja ligeiramente fantasioso. Tem razão. Havia um desempregado a
afogar-se, de facto, mas não foi a Constituição que o salvou, como é evidente.
Foi o programa do Governo, o que, aliás, não surpreende. O programa do Governo
fez mais pelos desempregados em dois anos do que a Constituição em 37. Ou
talvez seja abusivo dizer que o programa de Governo fez muito pelos
desempregados. É mais correcto dizer que fez muitos desempregados. Mas é quase
a mesma coisa.
O
fundamental é reconhecer que Passos Coelho tem razão: a Constituição nunca fez
nada pelos desempregados. São 296 artigos e mais um preâmbulo de pura preguiça.
É uma Constituição que não cria, não inova, não pratica o empreendedorismo. Não
faz sequer pequenos biscates, nem tarefas domésticas. A Constituição nunca me
lavou a loiça, nem me fez a cama. Embora, diga-se, pareça muito empenhada em
fazer a cama ao primeiro-ministro.
Eu
não sou constitucionalista, mas admito que Passos Coelho saiba do que fala. A
Constituição foi aprovada com os votos favoráveis do PSD. Jorge Miranda,
considerado o pai da Constituição (e, sem desprimor para Bacelar Gouveia,
também o único constitucionalista português que parece ter sido desenhado pelo
autor dos Simpsons), era deputado à constituinte pelo PSD. E todas as revisões
constitucionais foram aprovadas com os votos favoráveis do PSD. Na qualidade de
presidente do PSD, é natural que Passos Coelho conheça bem o tipo de texto que
o seu partido concebe e aprova para melhorar a vida dos desempregados.”
Ricardo
Araújo Pereira, na “Visão” de 5 de Setembro
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