segunda-feira, 8 de novembro de 2010

“Ao Salvamento! Mercados e crianças, primeiro.”

“A entrevista que Cavaco Silva deu esta semana ao Expresso é a todos os títulos, surpreendente. Em primeiro lugar, é surpreendente que tenha sido Cavaco a dá-la, em vez de Marcelo Rebelo de Sousa. Pessoalmente, prefiro saber pela boca do professor Marcelo aquilo que o Presidente da República pensa e faz. Como se viu no caso do anúncio da candidatura à presidência, o professor Marcelo é mais rápido, mais claro e mais sucinto do que Cavaco a fornecer informações sobre Cavaco. Percebe-se mal, por isso, a opção do Expresso: entrevistar Cavaco Silva quando se quer saber a opinião de Cavaco Silva é, simplesmente, mau jornalismo. No entanto, há que admitir que o Presidente se esforçou por falar de si mesmo como Marcelo Rebelo de Sousa falaria: com aquele tipo de elogios que amesquinham. Disse Cavaco: "Sou o único Presidente que não dissolveu a assembleia, pois prezo a estabilidade." Ou seja, Cavaco dirigiu a si mesmo um louvor que parece mesmo uma injúria. Qual dos leitores está grato ao Presidente pela soberba estabilidade em que vive? Imagino o elevadíssimo número de portugueses que estão em casa a pensar: "Bom, acabo de ficar desempregado e, tendo em conta o brutal aumento do custo de vida, o subsídio não me chega para sustentar a família. Mas sempre fico com mais tempo para apreciar esta magnífica estabilidade que o Sr. Presidente da República me tem proporcionado." No fundo, gabar-se de ser o único que não dissolveu a assembleia equivale a dizer: "Reparem que eu não fiz nada. Escusam de agradecer." Marcelo não teria sido mais perverso. De resto, Cavaco Silva partilha as preocupações de toda a gente que não vai sentir na pele os efeitos da nova política de austeridade: é importante que o PSD viabilize rapidamente o orçamento, para que o orçamento possa começar a inviabilizar a nossa vida. Ainda sou do tempo em que os orçamentos tinham por objectivo facilitar a vida dos cidadãos. Agora, trata-se de facilitar a vida a essa entidade misteriosa que se chama "os mercados". Antigamente, os eleitores votavam nos seus representantes e estes, em retribuição, definiam um orçamento que servisse as aspirações dos eleitores. Agora, há que agradar aos mercados, o que torna o trabalho dos deputados mais complexo, até porque os mercados são mais exigentes que os eleitores. E mais poderosos. Os mercados são uma espécie de bicho feroz cujo aspecto ninguém conhece ao certo. A única coisa que sabemos acerca dos mercados é que levam a mal se os portugueses não passarem a pagar mais pelo leite. E sabemos também que são uma entidade colectiva, o que assusta mais. Não temos de agradar apenas a um mercado, mas sim a uma pluralidade de mercados. Os mercados atacam em grupo, como os gangues. Mas são menos meigos e levam-nos mais dinheiro.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

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