quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

De novo a Avaliação do Desempenho Docente

Num momento em que proliferam, de novo, as tomadas de posição de várias escolas e departamentos contra a aberração que constitui (à semelhança do anterior) o modelo de avaliação docente resultante do acordo entre o Ministério da Educação e os principais sindicatos representativos da classe, não podia, pela clareza e pertinência do texto, deixar de publicar este conjunto de questões irrespondíveis, que o Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Escola Secundária de Amora colocou ao Director, em forma de requerimento. “Exmo. Sr. Director da Escola Secundária com 3.º Ciclo do Ensino Básico de Amora Após cinco meses de trabalho de análise do conteúdo dos documentos legais relativos à avaliação do desempenho docente, os professores do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Escola Secundária com 3.º Ciclo do Ensino Básico de Amora vêem-se confrontados com obstáculos que ainda não conseguiram ultrapassar e que se lhes afiguram impeditivos da salvaguarda do direito de todos os professores a uma avaliação justa, séria e credível.
1. O primeiro grave obstáculo diz respeito à falta de formação para o exercício da função de professor relator. Há três anos que os professores reivindicam essa formação como condição necessária para o cumprimento credível dessa função. O Conselho Científico para a Avaliação dos Professores recomendou formalmente que essa formação teria de ser de média e de longa duração, ministrada por instituições do ensino superior. Esta formação é necessária não apenas para os professores relatores poderem exercer com credibilidade a sua função, como é fundamental para que os professores avaliados possam reconhecer neles essa mesma credibilidade. Este é um obstáculo que ainda não conseguimos ultrapassar. 2. O segundo obstáculo, provavelmente derivado do primeiro, prende-se com a objectiva impossibilidade de resolução dos problemas técnicos que a execução prática do modelo de avaliação suscita. Desses problemas técnicos damos, de seguida, alguns exemplos e requeremos os respectivos esclarecimentos.
1.º Problema. Indicador: «Reconhecimento do dever de promoção do desenvolvimento integral de cada aluno». O descritor, dos níveis «Excelente» e «Muito Bom», correspondente a este indicador é o seguinte: «Revela profundo comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno». Requeremos os seguintes esclarecimentos: — De que modo é fiável avaliar se um professor está «comprometido na promoção do desenvolvimento integral de um aluno»? — Com duas ou três aulas observadas, de que modo pode ser avaliado, com um mínimo de fiabilidade, o comprometimento do professor no desenvolvimento integral de «cada» aluno (conforme enuncia o indicador)? — Relativamente aos professores que não têm aulas observadas como deve ser realizada, de modo fiável, essa avaliação? — De que modo fiável se determina a fronteira entre estar profundamente comprometido e estar apenas comprometido? Segundo que critérios se avalia o grau de profundidade de um comprometimento? — Quais são os critérios que permitem estabelecer a fronteira que separa o desenvolvimento integral do desenvolvimento não integral de um aluno, e que critérios permitem aferir a respectiva promoção desse desenvolvimento?
2.º Problema. Indicador: «Responsabilidade na valorização dos diferentes saberes e culturas dos alunos.» Este indicador, inexplicavelmente, não tem ligação com nenhum dos treze descritores existentes. Requeremos os seguintes esclarecimentos: — Que critérios fiáveis permitem aferir se um professor valoriza os diferentes saberes e culturas dos alunos? — Quando se pretende a valorização dos diferentes saberes e culturas dos alunos isso significa que todos os saberes e culturas devem ser igualmente valorizados, independentemente dos valores que essas culturas defendam? Se não forem igualmente valorizados, que critérios devem presidir à sua diferenciação? — Como se deve avaliar, sem aulas observadas, se um professor valoriza ou não valoriza os saberes e as culturas dos seus alunos?
3.º Problema Descritor: «O docente demonstra claramente que reflecte e se envolve consistentemente na construção do conhecimento profissional e no seu uso na melhoria das práticas.» (Nível «Excelente») Requeremos os seguintes esclarecimentos: — Como se deve proceder à distinção entre uma demonstração clara e uma demonstração não clara? Existem demonstrações não claras? De que características se revestem? — Como se define, em termos comportamentais, uma «envolvência consistente»? — Como se determina, de modo fiável e observável, a fronteira entre uma envolvência consistente e uma envolvência não consistente?
4.º Problema Descritor: «Revela um profundo comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno e investe na qualidade das suas aprendizagens.» (Níveis «Excelente» e «Muito Bom»). Descritor: «Revela comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno e na qualidade das suas aprendizagens.» (Nível «Bom»). A diferença entre os níveis «Excelente» e «Muito Bom» e o nível «Bom» reside exclusivamente na ausência, neste último, dos termos «profundo» e «investe», Requeremos o seguinte esclarecimento: — Entre um profundo comprometimento e um comprometimento que não seja profundo como deve ser medida a diferença? Isto é, que comportamentos configuram um profundo comprometimento, e que comportamentos configuram um comprometimento não profundo?
5.º Problema Descritor: «Participa no trabalho colaborativo e nos projectos da escola com alguma regularidade.» (Nível «Bom») Requeremos os seguintes esclarecimentos: — No contexto específico da «participação no trabalho colaborativo e nos projectos da escola», como se mede a regularidade no trabalho colaborativo? Aquele que participa no trabalho colaborativo com «regularidade» é aquele que colabora todos os meses, todas as semanas, algumas vezes por semana, todos os dias? Como se mensura, enquanto comportamento, a participação com «regularidade», no trabalho colaborativo? — O quantificador existencial «alguma» (regularidade), presente neste descritor, remete para uma indeterminação. Como deve ser medida essa indeterminação?
6.º Problema Descritor: «O docente demonstra alguma preocupação com a qualidade das suas práticas [...]» (Nível «Regular»). Descritor: «Revela alguma preocupação com as aprendizagens dos alunos [...]» (Nível «Regular»). Constata-se que ambos os descritores enunciam um estado de espírito: «preocupação». Requeremos os seguintes esclarecimentos: — Como se mensura um estado de espírito? Que critérios operativos devem ser utilizados para medir um estado de espírito? — Também neste descritor se encontra o quantificador existencial «alguma», que nos remete para uma indeterminação. Como é possível avaliar através de um quantificador indeterminado? Como é possível avaliar através de um quantificador indeterminado um estado de espírito?
7.º Problema Esta dimensão é composta por quatro domínios, sendo que dois desses domínios são avaliados apenas nos casos em que os professores têm aulas observadas. Todavia, existem descritores que sobrepõem domínios avaliáveis em situação de aula observada com domínios que são avaliados sem aulas observadas. Isto é, sobrepõem o domínio «preparar/organizar actividades lectivas» com o domínio «realizar actividades lectivas» (por exemplo, 4.º e 6.º descritores do nível «Excelente»). Requeremos o seguinte esclarecimento: — Nestes casos, como deve ser operacionalizada a avaliação?
8.º Problema Indicador: «Comunicação com rigor e sentido do interlocutor». Requeremos os seguintes esclarecimentos: — Que significado deve ser atribuído à expressão: «Comunicação [...] com sentido do interlocutor»? — Em termos avaliativos, qual a operacionalização que deve ser dada a este enunciado?
9.º Problema Descritor: «Constitui uma referência para o desempenho dos colegas com quem trabalha». Inexplicavelmente, este descritor não tem relação com qualquer um dos catorze indicadores. Requeremos os seguintes esclarecimentos: — Como deve ser contextualizado, em termos avaliativos, um descritor sem indicador? — Quais são os critérios que permitem avaliar, de modo fiável, se um professor é uma «referência»? — Neste caso concreto, o descritor enuncia que o professor deve ser uma referência, mas não indica «em quê»? Da ausência de especificação da referência deve inferir-se que o professor deve ser uma referência na totalidade dos catorze indicadores? Sendo assim, como se operacionaliza essa avaliação? Se não se refere a todos os indicadores, refere-se a quantos e a quais?
10.º Problema Descritor: «O docente evidencia elevado conhecimento científico, pedagógico e didáctico inerente à disciplina/área curricular.» Requeremos o seguinte esclarecimento: — O que se entende por «elevado conhecimento científico»? Qual a fronteira entre um conhecimento científico elevado e um conhecimento científico não elevado? — De que forma é que os professores podem revelar possuir «elevado conhecimento científico»? — Existem dois modos de se evidenciar ser detentor de conhecimento científico: através de texto escrito e através de texto oral. A nível oral: não sendo a aula (do ensino básico ou do ensino secundário) um local adequado para a apresentação de profundas exposições nem para demonstrações científicas que permitam aquilatar da elevação de um conhecimento, como pode/deve ser avaliado o elevado conhecimento científico de um professor? A nível escrito: que textos escritos deve o professor elaborar para demonstrar o seu «elevado conhecimento científico»? Escrever livros? Redigir ensaios? Publicar artigos em revistas da especialidade? Fazer um trabalho sobre uma determinada matéria? — Quem é detentor de autoridade e de credibilidade científica para avaliar o elevado conhecimento científico de alguém? — Do ponto de vista formal, para que o processo não seja a priori descredibilizado, o avaliador terá de possuir uma habilitação académica superior ao avaliado — tanto mais que será chamado a avaliar do elevado nível de conhecimento científico do seu avaliado. Todavia não é isto que se passa. Como se ultrapassa este problema?
11.º Problema Descritor: «Planifica com rigor, integrando de forma coerente e inovadora propostas de actividades, meios, recursos e tipos de avaliação das aprendizagens.» Em contexto pedagógico, a inovação, além de não ser um fim em si mesmo, muitas vezes, não é sequer um meio. Em contexto pedagógico, os problemas não só não têm de ser resolvidos de modo inovador como, em muitos casos, não devem ser resolvidos de modo inovador. Devem ser resolvidos de modo adequado a cada aluno, e esse modo adequado pode não ter nada de inovador. Assim, requeremos o seguinte esclarecimento: — Em termos de avaliação do desempenho do professor, como deve ser resolvido este problema (o descritor determinar uma prática e a pedagogia e o interesse do aluno determinarem outra)?
12.º Problema Descritor: «Planifica de forma adequada» A adequação de uma planificação só é susceptível de ser avaliada a posteriori. Só depois de aplicada é que o professor saberá se a planificação foi adequada, e, muitas vezes, não o consegue saber imediatamente após aplicação, e, outras vezes, nunca o virá a saber, com a certeza que gostaria de saber. Sendo assim, aquilo que poderá ser objecto de uma avaliação a priori (que é disto que se trata no presente descritor, porque são outros os descritores que abordam a prática) será apenas o carácter presumivelmente adequado da mesma, tendo em atenção as características da turma. Ou seja, o que será susceptível de ser avaliado é a fundamentação que o professor apresenta para optar por determinada planificação, e não por outra, em função do conhecimento dos seus alunos. Todavia, o professor relator não conhece a turma (não conhece rigorosamente nada, nos casos em que não observa aulas; e pouco mais que nada conhece, nos casos em que observa duas ou três aulas, conforme está previsto). Isto é, o professor relator não tem condições para avaliar se é adequada ou presumivelmente adequada a planificação elaborada pelo professor avaliado, por desconhecimento dos alunos aos quais ela se destina. Requeremos o seguinte esclarecimento: — Tendo presente esta impossibilidade, como deve ser feita a avaliação?
13.º Problema Descritor: «Promove consistentemente a articulação com outras disciplinas e áreas curriculares e a planificação conjunta com pares.» (Nível Excelente) É sabido que alguns advérbios avaliativos são de objectivação particularmente difícil ou mesmo impossível. É o caso do advérbio «consistentemente», presente neste descritor. Deste modo requeremos os seguintes esclarecimentos: — De que modo é possível determinar a fronteira entre uma promoção consistente e uma promoção não consistente? — Que critérios deve o avaliador utilizar para definir essa fronteira? — Se não definir essa fronteira, como poderá o professor relator avaliar o nível em que se situa o desempenho do professor avaliado?
14.º Problema O descritor do nível «Excelente» enuncia: «Concebe e aplica estratégias de ensino adequadas às necessidades dos alunos e comunica com rigor e elevada eficácia.» Por sua vez, o descritor do nível «Muito Bom» diz: «Concebe e aplica estratégias de ensino adequadas às necessidades dos alunos e comunica com rigor e eficácia.» Constata-se, nestes dois descritores, que a diferença entre um professor «Excelente» e um professor «Muito Bom» reside no facto de um comunicar com «elevada eficácia» e o outro comunicar apenas com «eficácia». Isto pressupõe afirmar que é possível determinar, com clareza, a diferença entre uma eficácia «elevada» e um eficácia «não elevada». Deste modo, requeremos os seguintes esclarecimentos: — Como se determina a fronteira entre uma comunicação realizada com «elevada eficácia» e uma comunicação realizada com uma eficácia não elevada? — Quais são os instrumentos avaliativos que possibilitam a medição da eficácia?
15.º Problema A primeira parte do quarto descritor do nível «Bom» enuncia: «Procura adequar as estratégias de ensino às necessidades dos alunos [...]» A primeira parte do descritor do nível «Regular» diz: «Implementa estratégias de ensino nem sempre adequadas às necessidades dos alunos [...]» «Procurar adequar as estratégias» significa que o professor tenta implementar estratégias adequadas, o que comporta a possibilidade de não conseguir implementar estratégias adequadas. Apesar disso, segundo o descritor, este desempenho situa-se no nível «Bom». Todavia, um professor que efectivamente implemente estratégias de ensino adequadas, ainda que nem sempre o faça, é penalizado e classificado como «Regular». Requeremos o seguinte esclarecimento: — Um professor que implemente estratégias de ensino adequadas, ainda que nem sempre o consiga deve ser penalizado relativamente a um outro que apenas procura adequar as estratégias, mas que pode não conseguir implementá-las?
Acabámos de referir exemplos de problemas relativos às duas primeiras dimensões dos Padrões de Desempenho. Todavia, problemas desta natureza repetem-se nas restantes dimensões. Estamos, deste modo, confrontados com a dificuldade de ultrapassar estes obstáculos e estes problemas. Problemas que, enquanto não esclarecidos, objectivamente nos impedem de prosseguir os trabalhos relativos ao processo avaliativo. A seriedade profissional a que estamos obrigados exige que requeiramos junto de V. Exa., ou de quem V. Exa. considerar dever endereçar, estes imprescindíveis esclarecimentos. Amora, 15 de Fevereiro de 2011” Surripiado do blogue "O estado da educação e do resto", depois de confirmação telefónica da sua autenticidade.
Apache, Fevereiro de 2011

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