domingo, 31 de agosto de 2008

E se metessem o chip naquele sítio…

A propósito da promulgação da lei que permite a introdução (para breve) do chip nas matrículas dos automóveis, que é assim uma espécie de pulseira electrónica para gente de brandos costumes, lembrei-me deste artigo de José Manuel Fernandes, no “Público” de 21 de Julho de 2008.
“Acordo com o toque do telemóvel. Num computador algures, fica registado o número de telefone que me ligou e a zona em que estava quando o atendi. Levanto-me, tomo o pequeno-almoço e passo por uma caixa multibanco. Noutro computador algures ficam registadas todas as operações que efectuei. E também o lugar exacto onde estava. Entro no automóvel e, a caminho do trabalho, sigo pela auto-estrada. Como tenho Via Verde, um outro computador regista a minha passagem e arquiva-a. Ao longo do dia, todos os telefonemas que fizer ou receber no meu telemóvel continuarão a ficar registados num computador, e o meu operador tem ordens para guardar os registos durante um período determinado para eventual utilização pelas autoridades. O mesmo vai suceder com todas as vezes que utilizar um dos meus cartões de débito ou de crédito. Ou quando estacionar num parque onde também exista Via Verde. No meu local de trabalho, como em quase todos, há câmaras de vigilância que não estão apontadas a nenhum posto de trabalho, mas onde ficam registadas todas as vezes que entro e saio do edifício. Pelo menos. Se, por acaso, me dirigir a um centro comercial, serei por certo filmado por mais uma mão cheia de câmaras, e os seus registos também ficarão guardados durante pelo menos 30 dias. Virtualmente, já é possível a uma qualquer polícia reconstituir tudo o que fiz ao longo do dia. Mesmo sem ter de recorrer a escutas nem colocar um agente a seguir-me. Apenas cruzando informação presente em computadores a que pode ter acesso quando desejar, bastando-lhe cumprir um mínimo de exigências legais. Mas mesmo tudo isto não chega ao nosso Estado. Num ousado gesto de inovação por certo integrado no "choque tecnológico" (suponho, pois já ninguém fala dele), agora os burocratas do Terreiro do Paço querem que a matrícula do meu carro - de todos os carros - tenha um chip. E se o Governo pensou na genial iniciativa, logo a acéfala maioria PS na Assembleia se prontificou para a votar sem se questionar um minuto sequer sobre o significado do que estava a fazer. A partir do próximo ano, o nosso querido Estado, se a lei passar o teste da constitucionalidade, pode passar a saber por onde anda o meu carro, a que velocidade se deslocou entre dois "sensores", onde o deixei estacionado, quem nele viajava (basta cruzar as informações do chip da matrícula com as dos telemóveis) e uma quantidade de outras coisas que fazem parte da intimidade de cada cidadão. Faltará passar do chip na matrícula para o chip subcutâneo, altura em que o Estado me poderá prestar, com a maior eficiência, uma enorme quantidade de serviços com enormes vantagens económicas. No chip subcutâneo pode estar tudo: os meus dados de identidade, a minha história civil, todos os registos médicos, os meus dados fiscais, porventura uma boa parte do que estiver em todas as outras bases de dados. E nem será muito difícil desenvolver a geringonça, pois já há chips para cães. Exactamente: para cães. E para outros animais domésticos ou de criação. Porquê? Porque esses animais têm um dono. Não são livres nem têm o livre arbítrio que associamos aos seres humanos. Mas, pelo caminho que as coisas estão a levar, não tarda nada que achemos natural que o que muitos apresentam como a sombra protectora do Estado se transforme num ambiente de absoluta claustrofobia que viola o mais central dos direitos humanos: o da livre escolha do que faz ou não faz na sua esfera privada, ou mesmo íntima, sem ter de sentir que, sob formas mais sofisticadas dos que as imaginadas por Aldous Huxley no seu Admirável Mundo Novo ou por George Orwell em O Triunfo dos Porcos ou 1984, vivemos sob vigilância permanente ou somos constantemente condicionados. Num país onde o valor da liberdade fosse minimamente valorizado, o chip nas matrículas teria levantado um sobressalto cívico. Em Portugal, suscitou pouco mais do que um encolher de ombros. Tal como o famoso "cartão único", que nos foi vendido como sendo inócuo mas que parece que vai ter um efeito perverso não anunciado: quando estiver em vigor, ninguém mais vai ter a liberdade de não se recensear para votar, pois o recenseamento eleitoral passará a ser automático. Parece pouco importante, mas é só um exemplo de como se podem embrulhar num laçarote de boas intenções outras intenções menos boas e não anunciadas. Nem sequer nas letras pequenas dos contratos.”
Apache, Agosto de 2008

7 comentários:

BIA disse...

...."Num país onde o valor da liberdade fosse minimamente valorizado, o chip nas matrículas teria levantado um sobressalto cívico. Em Portugal, suscitou pouco mais do que um encolher de ombros."


O mundo está muito perigoso, cada vez mais perigoso!E a pior cegueira é aquela que não quer ver...

Obrigada pela partilha, deixo um abraço livre e de peito aberto


BIA

redonda disse...

Pensei logo no Big Brother (o de George Orwell)

Diogo disse...

Devemos começar a responder na mesma moeda. Primeiro, organizar uma politicopedia, uma espécie de «wikipedia» que nos indique todo o percurso pessoal dos políticos: em que empresas trabalharam, onde estudaram, que outros políticos tiveram por colegas de escola, que cargos desempenharam, que medidas tomaram, que obras fizeram, etc.

Por outro, fotografá-los e filmá-los sempre que os virmos com os nossos telemóveis: num restaurante a jantar com um conhecido industrial, a entrar às 11 da noite na sede de uma construtora, etc. e colocar as imagens no youtube. O Big Brother pode funcionar nos dois sentidos.

Apache disse...

O pior cego é mesmo o que não quer ver. Beijinho, Bia.

Pensámos todos, Redonda. Acho que isto é só o começo.

É uma boa ideia, Diogo, mas a máquina de propaganda deles é bem mais forte que as verdades que consigamos mostrar.

DarkMorgana disse...

Se metessem o chip naquele sítio, como sugeres, a cada traque revelariam a origem das suas ideias...

Cleopatra disse...

AHHH! Mas esqueceu-se de uma coisa, Vexa vai ser OBRIGADO, OBRIGADO, leu bem, a gastar dinheiro com o tal chip que eles bem podiam meter ... no e se fossem ver se chove.
Bjito e olhe, gostei mesmo da postagem
A referencia ao Admirável Mundo Novo está bem vista. Nem mais.
Será que o tal chip subcutaneo que nos irão colocar num futuro próximo indica a temperadtura da pele? Hummm e qdo é muito elevada que quererá dizer?!..pois... Xau!
Ou xauzesco?

Apache disse...

Inspirada, Morgana?!

Bem lembrado, Cléo.