"Toda a gente conhece as mensagens atribuídas a Bin Laden, por norma gravadas em vídeo ou áudio de péssima qualidade em cavernas de qualidade pouco superior. De vez em quando é divulgada uma mensagem dessas, onde o psicopata mais popular da luta islâmica exalta o Profeta do costume e ameaça os infiéis do costume. A lengalenga dos registos é tão semelhante que custa perceber se os desabafos de Bin Laden são recentes ou foram proferidos em 1979. Para alguns, é igualmente difícil apurar se os desabafos são de Bin Laden ou de qualquer actor amador que, provido das rodilhas, da barba e da sujidade adequadas, obtém o aspecto de faquir necessário à função. Assim, cada tentativa de prova de vida da criatura acaba por surtir o efeito perverso de lançar dúvidas sobre o respectivo estado: Bin Laden ainda vive? Bin Laden terá sequer existido?
Vem isto a propósito da mensagem de Natal do primeiro-ministro. É verdade que as suas aparições nunca ocorrem em cavernas e que a qualidade dos meios técnicos é inquestionável. O enigma está na retórica. O eng. Sócrates detecta sinais de recuperação económica em Portugal. O eng. Sócrates sabe que a crise é internacional e a maior das últimas oito décadas. Apesar da crise, o eng. Sócrates encontra-se optimista. O eng. Sócrates não recua perante as adversidades. O eng. Sócrates possui energia interior. O eng. Sócrates aposta nas energias renováveis. O eng. Sócrates mudou o país. O eng. Sócrates é fanático da educação. O eng. Sócrates é reformista. O eng. Sócrates é nosso amigo. O eng. Sócrates é solidário. O eng. Sócrates é confiante. O eng. Sócrates é responsável. O eng. Sócrates é exigente. O eng. Sócrates é consciente.
Esta torrente de banalidades, anedotas, delírios, alívios, sentimentalismo e descaramento foi emitida no dia 25 de Dezembro, mas podia tê-lo sido na semana, no mês ou no ano anterior. A bem dizer, desde 2008 que, na época natalícia ou na época que calha, o homem não diz coisa diferente. E embora, como os sequestrados que levantam o jornal do dia para confirmar a data da fotografia, o eng. Sócrates tenha mencionado pormenores e proezas recentes, isso, qualquer truque de montagem explica.
Truques à parte, eis um mistério: por um lado, o carácter intemporal e absurdo das proclamações do eng. Sócrates sugere que ele já não partilha a realidade connosco; por outro, o estado calamitoso dessa realidade sugere que ele não deve andar longe. As ruínas que ele não parece habitar exibem a sua marca inconfundível. Se o eng. Sócrates não existe, terá de ser imaginado."
Alberto Gonçalves, no "Diário de Notícias" de 26 de Dezembro
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