«Vejo um programa da RTP transmitido em “direto” e sinto um arrepio por altura das vértebras cervicais. Não graças ao programa, de que nem me lembro, mas graças ao “direto”: pois é, o Acordo Ortográfico já contaminou a televisão do Estado. Em breve, ameaça contaminar tudo. E o resultado é ainda pior do que se podia imaginar.
Segundo as sumidades que o conceberam, o Acordo Ortográfico serve, cito, para “aumentar o prestígio da língua portuguesa”. Não sei bem em que consiste o “prestígio” de uma língua. Talvez estes defensores do português não o dominem devidamente e pretendam referir-se à sua importância, influência e disseminação. Se é isso, é fácil. Basta que um, ou preferencialmente mais do que um, dos países “lusófonos” possua uma literatura canónica, universidades invejáveis, centros científicos de primeira linha, tecnologia indispensável e universal, capacidade industrial, pujança comercial, peso político e, se não for maçada, uma cultura popular omnipresente através da música, do cinema e do que calha. Basta, enfim, que um dos países “lusófonos” seja a América. Ou, se formos modestos, a França ou a Espanha.
Na impossibilidade de se alcançar tais ninharias, é garantido que o “prestígio” da língua de Camões e de Jorge Jesus não se obtém mediante brincadeiras imberbes em volta dos “c”, “p” e hífenes. O que se obtém é uma mistela concebida em laboratório, tão desagradável para quem a escreve como para quem a lê. Desagradável e ineficaz.
Daqui em diante, será complicado presumir que um funcionário até agora diligente obedeça ao “diretor”. Ou acreditar nas dioptrias recomendadas pela “ótica”. Ou esperar que as senhoras “deem” o devido valor a uma “joia”. Isto em teoria, claro.
Na prática, os hábitos da contemporaneidade e a tortura infligida durante décadas ao sistema educativo levam a que uma impressionante quantidade de portugueses (e, suponho, de brasileiros, angolanos, etc.) desconheça suficientemente o português pré-Acordo para conseguir adoptar o português do Acordo. O que se constata por aí, na rua, na imprensa, nos livros, na internet, nas televisões, nas SMS e no Parlamento, em “direto” ou diferido, não é uma língua candidata ao prestígio internacional, mas uma coisa a caminhar para a extinção nacional. Quase um dialecto, que dispensava a acrescida humilhação do “dialeto”»
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias” do passado dia 19
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