“Nasci em Matosinhos e vivo a maior parte do tempo em Matosinhos. Durante décadas, assisti à transformação de uma vila bonitinha e animada numa cidade suburbana, feia, repleta de lojas fechadas e onde à noite as ruas se esvaziam como se houvesse recolher obrigatório. Aturei o PS a mandar na autarquia desde o Paleolítico e a trazer aqui os próceres nacionais de modo a abençoá-los no mercado do peixe e na lota. Soube da morte de Sousa Franco antes de a notícia chegar às televisões. Sou vizinho do armazém que embala o Magalhães e constrói o futuro tecnológico dos rústicos. Já vi de tudo em Matosinhos. Nunca vira o que sucedeu no passado fim-de-semana. Teoricamente, tratou-se de um congresso socialista. Na prática, foi outra coisa. Na Exponor houve um palco, sanfonas retiradas de filmes, luzinhas, telas gigantes, efeitos "multimédia", uma multidão de crentes e clientes e um guru, travestido de estadista, que ensinava à multidão os clichés a repetir. Ou ele ou o caos. Ou ele ou as "aventuras". Ou ele ou um país falido, que por acaso é o que temos graças, em larga medida, às proezas do guru. Hesito em decidir se os rituais de tão tresloucado circo imitavam uma daquelas sessões de motivação e auto-ajuda ou um culto evangélico. Pensando bem, o congresso socialista foi exactamente o que um congresso socialista deve ser: uma máquina de pregar aos convertidos e assustar os restantes. O chato é que, embora alimentada a idiotia, a máquina funciona. Aliás, isso explica parcelarmente que o partido responsável por uma bancarrota sem muitos precedentes e por um rol de mentiras sem precedentes nenhuns pareça, hoje, mais próximo de voltar a mandar no país do que a oposição que lhe tocou literalmente em sorte. A parcela da explicação que falta remete para a oposição, se esse conceito define adequadamente o PSD do Dr. Passos Coelho. Nas circunstâncias actuais, qualquer alternativa sofrível à toleima do PS estaria com cinquenta por cento nas sondagens. O PSD, porém, faz o que pode para não se mostrar sofrível nem alternativa. Em poucos dias, conseguiu: a) arranjar uma trapalhada em volta do PEC IV e das reuniões/telefonemas trocados com o primeiro--ministro; b) ouvir recusas (provavelmente desejadas) de cada "notável" convidado a concorrer a deputado; c) escolher os "cabeças de lista" distritais segundo os critérios: ex-candidatos-presidenciais-com-votos-hipotéticos-à-solta e colunistas-inteligentes-que-não-criticam-o-Pedro; d) manter-se em escrupuloso silêncio sobre o programa de governo. A última alínea não é disparatada: por este andar, o PSD só governará quando os maluquinhos da Exponor lhe pedirem ou as galinhas do Dr. Nobre tiverem dentes, de acordo com o que acontecer primeiro (…)”
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”
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