«Mal se conheceu a composição do novo Governo, resmas de comentadores e "politólogos" (?) precipitaram-se rumo às televisões para distribuir, presume-se que de borla, palpites sobre a matéria. A certa altura, a coisa lembrou um concurso de "misses", no qual o jornalista de serviço lançava o nome de um ministro e os jurados, desculpem, os comentadores presentes avaliavam, com base no conhecimento de causa ou na fezada, os respectivos méritos. A competência técnica era a prova em vestido de noite. O peso político equivalia à prova em fato de banho, e foi naturalmente aqui que as críticas se espevitaram.
Ao que percebi, a maioria dos comentadores concede prioridade ao referido peso político, no pressuposto de que uma vida dedicada à carreira partidária habilita melhor um sujeito a mandar nos semelhantes. Já a parte técnica, ou "tecnocrática", é olhada de viés: numa curiosa inclinação que explica a nossa História recente e não só, a "inteligência" pátria não gosta de quem sabe fazer contas.
Eu, por acaso ou mania, gosto. Prefiro governantes movidos por uma racionalidade comezinha e séria a governantes repletos de "visões", "missões" e "desígnios", típicas camuflagens da inépcia ou da fraude. Assim, arrisco-me a expandir a imensa lista de conjecturas e digo que me parecem bem entregues as pastas das Finanças e da Economia. Parece-me razoavelmente entregue a pasta da Saúde. Parece-me uma bênção, eventualmente tardia, que, por uma vez, a pasta da Educação tenha ido parar ao mais público e lúcido adversário do estado comatoso e entre comas a que a dita desceu. Quatro nomeações decentes (ou óptimas), quatro "independentes".
No lado oposto, vejo com certa reserva a opção para a Justiça, menos pelas capacidades profissionais de Paula Teixeira Pinto do que pelas imediatas manifestações de simpatia do bastonário da Ordem dos Advogados e desse vulto inclassificável chamado Boaventura de (não esquecer o "de") Sousa Santos. E suspeito que a designação de um "orgânico" da estirpe de Miguel Relvas para liderar a reforma administrativa é indício de que não se pretende reformar administração nenhuma.
Porém, mesmo que se estenda o benefício da dúvida ao Executivo inteiro e se acredite que ali há vontade de cumprir as imposições decretadas pela 'troika', seria absurdo considerar que tal disposição representa meio caminho andado. No máximo, é um décimo, talvez um centésimo do caminho. Será também preciso aliar à vontade o talento. E acrescentar ao talento uma eficácia literalmente extraordinária. E ignorar os sindicatos, as corporações, os lóbis, a "rua" e a genética resistência do português médio à mudança. E transformar este caldo de improdutividade num país susceptível de atrair o investimento exterior. E etc.
Do que depende do Governo, a tarefa é dificílima. Do que não depende do Governo, mas da tragédia grega, da paciência alemã e da sorte em geral, a tarefa parece impossível. Resta-nos esperar, embora de pé: sentados chegámos a isto.»
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias”
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