“Duas palavrinhas:
Duas palavrinhas para iniciar a conversa: ouvi parte de um recente Fórum TSF sobre exames, em que era convidado o professor Carlos Fiolhais — a introduzir o tema, entrevistado por telefone. Tinha de sair (justamente para os exames…) e apanhei aqui o resto do Fórum, no De Rerum Natura. Fórum, comentários, desabafos — a coisa toda.
Sou professor em exercício e já ando há 40 anos nestas andanças; também fui aluno — 27 anos de escolaridade variada até aos meus 37 anos de idade — ainda sou quando calha, e já tive tempo para amadurecer ideias, porque ruminei sobre o assunto.
Matéria remoída:
A última frase que ouvi ao jornalista da TSF antes de abrir o debate, e de eu sair de casa, foi a seguinte: «Faz sentido ser mais exigente? Ou corremos o risco de, às tantas, estarmos apenas a preparar os alunos para os exames sem lhes dar uma formação mais global? Retomando aquela metáfora do futebol: ensinamos a marcar penáltis, não os ensinamos a jogar em equipa.»
Depois, começou a dança.
Primeira reacção que tive: os exames não são uma marcação de penáltis. O professor Carlos Fiolhais foi aceitando a comparação com o futebol com alguma reserva, dando-lhe o valor que merece a tentação, provocada pela simultaneidade do campeonato europeu. Mas percebeu a fragilidade de alguns paralelos, frisando que não se tratava bem da mesma coisa.
De facto, o erro de partida assenta numa crença bastante popular na seguinte ideia: o conhecimento é algo complexo, profundo, construído. O exame é um acaso, uma superficialidade, uma simplificação. E os alunos são treináveis para o momento, sem passar pela permanência.
Nada mais falso! Devo explicar o seguinte: tenho dado, durante a minha vida profissional, essencialmente, três disciplinas: Desenho, História da Arte e Geometria Descritiva. Diria que a primeira, a artística, é muito vocacional — embora seja passível de aprendizagem por qualquer pessoa normal; a segunda, é da área das humanidades; a última, é uma linguagem de representação gráfica de base matemática. Três áreas muito diferentes, por conseguinte.
Tive alunos em situação de exame nas três disciplinas. E garanto-lhe, caro Leitor, que, após 40 anos de ensino, não faço a menor ideia do que é «treinar um aluno só para o exame».
Porquê? Porque isso não é possível: de facto, o conhecimento é complexo, profundo e construído, de modo que o ensino tem de transmitir todas essas qualidades. O exame limita-se a verificar se o ensino foi eficaz, e se a aprendizagem correspondeu.
3 pontos:
1. Nós (os portugueses) pensamos que há grandes sortes e grandes azares na vida, e que nos exames os deuses jogam aos dados. Isto é patente nos comentários no Fórum que ouvi e li, e é corrente nos debates sobre educação. Porquê? Porque é voz corrente que para tudo o que vale a pena na vida há truques, atalhos, golpes.
Realidade crua — e dura: para exames, não há. A única forma de preparar gente para exame, é dar a matéria toda, insistir no que é fundamental (leia-se: estruturante), e insistir na seriedade do estudo e do trabalho dos discentes. E rever, e tornar atrás, e voltar a dar a mesmíssima matéria, para de novo provocar os cérebros a meditar nas mesmas questões, mas numa nova perspectiva: de revisita, de revisão, de redescoberta — tal qual como se conhecem os meandros de uma cidade: a pouco e pouco, mas com muito passeio, muita insistência, até a ter (quase) conquistada, perspectiva a perspectiva, aroma a aroma, restaurante a restaurante. Acho esta comparação melhor que a do futebol.
2. Nós (os portugueses) pensamos que há nervos, e que há stress, e brancas, e que é possível que alguém saiba imenso e faça um exame miserável. Porquê? Porque temos um ensino extraordinariamente maternal, protector, que infantiliza e, portanto, diminui e fragiliza os alunos. Ora um aluno que sabe a matéria — toda a matéria — pode ter uma ou outra surpresa em exame. Como num teste. Ou como na vida. Mas funciona, porque sabe a matéria — toda a matéria. Uns pontos melhor, outros pior, sabe. Não porque tenha estado a ser soprado por um preparador de exames, ou por três directas nas vésperas: apenas porque anda a estudar aquilo há dois, há três anos.
Se um estudante disser que sabia tudo e depois, com os nervos, teve uma branca e foi-se abaixo, uma de duas coisas se passa: o estudante não se preparou (e engana-se ou mente com os dentes todos que tem), ou o estudante tem, de facto, um problema grave de ansiedade paralisante que tem de ser visto por um médico (situação preocupante, que não deve ocorrer apenas em situação de prestação de contas escolares).
3. Nós (os portugueses) pensamos que há a matéria para exame (aahrgh!) e os outros saberes (hmmm!…). Porquê? Porque jornais, cientistas da educação, redes sociais, TV, taxistas, políticos, comentadores, mães e pais sortidos, colegas da bicha da caixa de supermercado, sociólogos, oradores de café, tudo quanto é fazedor e desfazedor de opinião — incluindo um número de profissionais do ensino — foram martelados, nos últimos 20 ou 30 anos, com um refrão: «há más e boas matérias, há aquilo que se marra e há coisas mais sérias» (pode cantar com a musiquinha «Quem tem medo do Lobo Mau?»).
De facto, o saber acumulado por séculos de ensino diz-nos o seguinte: lidar com conteúdos propicia competências; trabalhar sozinho fornece concentração; o trabalho de grupo é interessante nalgumas actividades, perfeitamente dispensável noutras — pelo que deve ser, singelamente, adequado —; tudo aquilo que não é praticado é esquecido (até andar a pé); e tudo isto é perfeitamente natural, de modo que saber a matéria para exame é estruturante, e é essa estrutura que parece apoiar os outros saberes. (Porque é que a expressão me irrita? Porque é saloia: é de gente que pouco sabe, armada aos cágados. Confesso: também isto são outros saberes…)
Ponto final:
Solução fácil: tomem-se todos aqueles (professores, sobretudo) que dizem que é possível treinar alunos ignorantes para fazer só o exame, e dêem-se-lhes turmas. Para eles aplicarem as suas teorias, e os meninos terem notas capitais. Vão ver o brilharete que fazemos nas estatísticas da OCDE!
Solução custosa: tratemos de fazer exames decentes (muitos, são-no!), e de verificar se tudo está a correr bem — os docentes a ensinar, os discentes a aprender. É, de momento, a única forma conhecida de verificar se o ensino de Vila Real de Santo António equivale ao de Abrantes ou ao de Viana do Castelo, e se todos são consistentes.
Os meninos preparados e minimamente cumpridores vão —surpreendentemente — passar; e com orgulho, tanto quanto me lembro das minhas próprias provas — já que nunca fui grande espingarda como aluno: nem sempre oleado, encravava, às vezes…”
Duas palavrinhas para iniciar a conversa: ouvi parte de um recente Fórum TSF sobre exames, em que era convidado o professor Carlos Fiolhais — a introduzir o tema, entrevistado por telefone. Tinha de sair (justamente para os exames…) e apanhei aqui o resto do Fórum, no De Rerum Natura. Fórum, comentários, desabafos — a coisa toda.
Sou professor em exercício e já ando há 40 anos nestas andanças; também fui aluno — 27 anos de escolaridade variada até aos meus 37 anos de idade — ainda sou quando calha, e já tive tempo para amadurecer ideias, porque ruminei sobre o assunto.
Matéria remoída:
A última frase que ouvi ao jornalista da TSF antes de abrir o debate, e de eu sair de casa, foi a seguinte: «Faz sentido ser mais exigente? Ou corremos o risco de, às tantas, estarmos apenas a preparar os alunos para os exames sem lhes dar uma formação mais global? Retomando aquela metáfora do futebol: ensinamos a marcar penáltis, não os ensinamos a jogar em equipa.»
Depois, começou a dança.
Primeira reacção que tive: os exames não são uma marcação de penáltis. O professor Carlos Fiolhais foi aceitando a comparação com o futebol com alguma reserva, dando-lhe o valor que merece a tentação, provocada pela simultaneidade do campeonato europeu. Mas percebeu a fragilidade de alguns paralelos, frisando que não se tratava bem da mesma coisa.
De facto, o erro de partida assenta numa crença bastante popular na seguinte ideia: o conhecimento é algo complexo, profundo, construído. O exame é um acaso, uma superficialidade, uma simplificação. E os alunos são treináveis para o momento, sem passar pela permanência.
Nada mais falso! Devo explicar o seguinte: tenho dado, durante a minha vida profissional, essencialmente, três disciplinas: Desenho, História da Arte e Geometria Descritiva. Diria que a primeira, a artística, é muito vocacional — embora seja passível de aprendizagem por qualquer pessoa normal; a segunda, é da área das humanidades; a última, é uma linguagem de representação gráfica de base matemática. Três áreas muito diferentes, por conseguinte.
Tive alunos em situação de exame nas três disciplinas. E garanto-lhe, caro Leitor, que, após 40 anos de ensino, não faço a menor ideia do que é «treinar um aluno só para o exame».
Porquê? Porque isso não é possível: de facto, o conhecimento é complexo, profundo e construído, de modo que o ensino tem de transmitir todas essas qualidades. O exame limita-se a verificar se o ensino foi eficaz, e se a aprendizagem correspondeu.
3 pontos:
1. Nós (os portugueses) pensamos que há grandes sortes e grandes azares na vida, e que nos exames os deuses jogam aos dados. Isto é patente nos comentários no Fórum que ouvi e li, e é corrente nos debates sobre educação. Porquê? Porque é voz corrente que para tudo o que vale a pena na vida há truques, atalhos, golpes.
Realidade crua — e dura: para exames, não há. A única forma de preparar gente para exame, é dar a matéria toda, insistir no que é fundamental (leia-se: estruturante), e insistir na seriedade do estudo e do trabalho dos discentes. E rever, e tornar atrás, e voltar a dar a mesmíssima matéria, para de novo provocar os cérebros a meditar nas mesmas questões, mas numa nova perspectiva: de revisita, de revisão, de redescoberta — tal qual como se conhecem os meandros de uma cidade: a pouco e pouco, mas com muito passeio, muita insistência, até a ter (quase) conquistada, perspectiva a perspectiva, aroma a aroma, restaurante a restaurante. Acho esta comparação melhor que a do futebol.
2. Nós (os portugueses) pensamos que há nervos, e que há stress, e brancas, e que é possível que alguém saiba imenso e faça um exame miserável. Porquê? Porque temos um ensino extraordinariamente maternal, protector, que infantiliza e, portanto, diminui e fragiliza os alunos. Ora um aluno que sabe a matéria — toda a matéria — pode ter uma ou outra surpresa em exame. Como num teste. Ou como na vida. Mas funciona, porque sabe a matéria — toda a matéria. Uns pontos melhor, outros pior, sabe. Não porque tenha estado a ser soprado por um preparador de exames, ou por três directas nas vésperas: apenas porque anda a estudar aquilo há dois, há três anos.
Se um estudante disser que sabia tudo e depois, com os nervos, teve uma branca e foi-se abaixo, uma de duas coisas se passa: o estudante não se preparou (e engana-se ou mente com os dentes todos que tem), ou o estudante tem, de facto, um problema grave de ansiedade paralisante que tem de ser visto por um médico (situação preocupante, que não deve ocorrer apenas em situação de prestação de contas escolares).
3. Nós (os portugueses) pensamos que há a matéria para exame (aahrgh!) e os outros saberes (hmmm!…). Porquê? Porque jornais, cientistas da educação, redes sociais, TV, taxistas, políticos, comentadores, mães e pais sortidos, colegas da bicha da caixa de supermercado, sociólogos, oradores de café, tudo quanto é fazedor e desfazedor de opinião — incluindo um número de profissionais do ensino — foram martelados, nos últimos 20 ou 30 anos, com um refrão: «há más e boas matérias, há aquilo que se marra e há coisas mais sérias» (pode cantar com a musiquinha «Quem tem medo do Lobo Mau?»).
De facto, o saber acumulado por séculos de ensino diz-nos o seguinte: lidar com conteúdos propicia competências; trabalhar sozinho fornece concentração; o trabalho de grupo é interessante nalgumas actividades, perfeitamente dispensável noutras — pelo que deve ser, singelamente, adequado —; tudo aquilo que não é praticado é esquecido (até andar a pé); e tudo isto é perfeitamente natural, de modo que saber a matéria para exame é estruturante, e é essa estrutura que parece apoiar os outros saberes. (Porque é que a expressão me irrita? Porque é saloia: é de gente que pouco sabe, armada aos cágados. Confesso: também isto são outros saberes…)
Ponto final:
Solução fácil: tomem-se todos aqueles (professores, sobretudo) que dizem que é possível treinar alunos ignorantes para fazer só o exame, e dêem-se-lhes turmas. Para eles aplicarem as suas teorias, e os meninos terem notas capitais. Vão ver o brilharete que fazemos nas estatísticas da OCDE!
Solução custosa: tratemos de fazer exames decentes (muitos, são-no!), e de verificar se tudo está a correr bem — os docentes a ensinar, os discentes a aprender. É, de momento, a única forma conhecida de verificar se o ensino de Vila Real de Santo António equivale ao de Abrantes ou ao de Viana do Castelo, e se todos são consistentes.
Os meninos preparados e minimamente cumpridores vão —surpreendentemente — passar; e com orgulho, tanto quanto me lembro das minhas próprias provas — já que nunca fui grande espingarda como aluno: nem sempre oleado, encravava, às vezes…”
António Mouzinho, no blogue “De Rerum Natura”
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