"Oitenta e quatro por cento dos italianos discordam do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que dias antes proibira (?) os crucifixos nas escolas públicas do país. Dado o número, é de admitir que os ateus de lá não possuam a fina sensibilidade dos ateus de cá, os quais, através de umas agremiações excêntricas, aplaudem a sentença e pedem a sua imediata importação. Segundo percebi, temem que a ingerência religiosa, assim exposta e abusiva, traumatize as criancinhas.
É capaz de ser um receio exagerado. Não me lembro se na minha sala da "primária" havia crucifixos. Lembro-me de que fora da sala havia uma igreja inteira, que contemplei da janela durante quatro anos. Além da igreja, existiam nas imediações oito capelinhas e uma filial da Santa Casa da Misericórdia. A escola, pública e laica, chamava-se "do Adro" e no adro jogávamos à bola. Contas feitas, marquei inúmeros golos e não sofri qualquer trauma, excepto nas canelas. Nunca experimentei apetites de frequentar a missa ou a catequese, provavelmente porque os meus pais vagueavam naquele tipo de ateísmo em que a religião não chega a ser assunto. Ao contrário dos peculiares ateus que não pensam noutra coisa.
Se querem poupar as criancinhas à imposição religiosa, os progenitores talvez fizessem melhor em ignorar os crucifixos e dirigir o combate para, por exemplo, o "ambientalismo" recorrente nos currículos e "actividades" escolares. Nas cabeças dos petizes, nenhuma cruz na parede tem uma fracção do impacto provocado pela doutrinação de patranhas sobre o "aquecimento global" e o papel do homem nas mudanças climáticas. O "ambientalismo" não é uma religião? É, sim senhor. Se não bastassem os seus mitos e os seus santinhos para o atestar, agora um tribunal britânico deu razão a um trabalhador alegadamente despedido em nome das respectivas "crenças ecológicas". De acordo com o juiz, o "credo ambiental" (sic) merece ser tão protegido da discriminação quanto os credos "tradicionais".
Em suma, estamos oficialmente no domínio da pura fé, com a agravante de que as proezas da Greenpeace não são exactamente o Cântico dos Cânticos e o "documentário" de Al Gore não é o "S. Mateus" de Bach. Não tenho um único argumento favorável à presença dos crucifixos, mas a preocupação com o bem-estar das criancinhas implica resguardá-las de todas as manipulações, sobretudo das ideológicas que, legitimadas pelo espírito da época, tomaram de assalto a "educação" e obrigam a referi-la entre aspas.
Perdida em preciosidades que vão do "ambiente" à educação sexual, passando pelo "multiculturalismo" e pelos enigmas que cabem na "educação cívica", a escola contemporânea abdicou daquilo que a escola do meu tempo, mesmo com uma igreja de Nicolau Nasoni a 50 metros e com doses variáveis de sucesso, ainda tentava: ensinar. Curiosamente, ou poucos protestam tamanha ingerência na liberdade alheia ou poucos os ouvem."
Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias” de hoje
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