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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

“O sexto sentido de Estado”

“Quando, na semana passada, o PS desafiou a oposição a apresentar uma moção de censura ao Governo, a política portuguesa ficou subitamente mais difícil de compreender. Os nossos políticos, que são pessoas bastante lineares, curiosamente produzem uma política muito complexa. Resumindo, o que se passa é isto: neste momento, Portugal tem um Governo que não se demite mas acha que a oposição devia demiti-lo, e uma oposição que não o demite mas acha que ele devia demitir-se. O primeiro-ministro deseja controlar os jornais, mas não consegue evitar que os jornais o descontrolem. E acusa os jornalistas de fazerem jornalismo de buraco de fechadura quando a porta está, na verdade, escancarada. Façamos uma história breve do que tem sido o Governo de Portugal nos últimos anos. Primeiro, Durão Barroso saiu, porque foi chamado pela Comissão Europeia. Sócrates não sai mesmo que lhe chamem tudo. Pelo meio, Santana também saiu, mas contra a sua vontade. Um sai porque quer, o outro sai sem querer e o último não sai nem que toda a gente queira. Antes de Durão, já Guterres saíra, porque tinha coisas combinadas e o Governo do País atrapalhava-lhe a agenda. Dos últimos quatro primeiros-ministros, só 50% quis manter-se no lugar, facto que imediatamente os torna suspeitos. O actual Governo está mergulhado em escândalos de vários tipos. Quem pode fazê-lo cair é o grupo parlamentar do PSD onde se encontra, por exemplo, António Preto, mergulhado em escândalos de vários tipos. Ou o Presidente da República, Cavaco Silva, cujos amigos e membros dos seus anteriores governos se encontram envolvidos em escândalos de vários tipos. O eleitor está um pouco confuso e com razão: é difícil optar entre tantos escândalos. Qual dos envolvidos em escândalos é o mais indicado para livrar o País destes escândalos? Eis uma questão difícil. Bom, sou capaz de me ter deixado levar pelo ambiente de suspeição que temos vivido. Vistas friamente, as acusações ao primeiro-ministro acabam por ser frágeis. É difícil sustentar que Sócrates quer acabar com a comunicação social quando verificamos que foi ele quem mais fez, nos últimos tempos, pela leitura de jornais. Para sermos justos, teremos de reconhecer que Sócrates acabou com os jornais, sim, mas nas bancas. Acabou com eles porque, por sua causa, a edição esgotou-se e teve de se fazer outra. Quem, no meio de tudo isto, poderá conduzir o País? Quem nunca esteve envolvido num caso obscuro, nunca teve cargos de responsabilidade em governos desastrosos, nunca recebeu dinheiro de Manuel Godinho? É possível que exista alguém que corresponda a este perfil, mas terá certamente menos de 10 anos. E colocar um menor de 10 anos no Governo do País poderá ter consequências trágicas: o País ficaria de certeza sem rumo, com o desemprego elevadíssimo, e manietado por uma crise profunda. Nem quero imaginar o que poderia acontecer.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

“Liberdade de pressão”

“É uma questão que tem sido colocada várias vezes: a internet vai acabar com os jornais? Finalmente, temos a resposta: só se José Sócrates não acabar com eles primeiro. O primeiro-ministro tentou controlar o défice e não conseguiu, tentou controlar o desemprego e não conseguiu, tentou controlar a comunicação social e esteve perto de conseguir. Acaba por ser justo que o plano tenha falhado. Era o que faltava que Sócrates fosse eficaz no que lhe interessa e ineficaz no que interessa ao País. Este caso tem essa dimensão muito reconfortante: ora até que enfim que o primeiro-ministro sofre com a inabilidade política do primeiro-ministro. Apesar disso, todos gostaríamos que José Sócrates colocasse nos assuntos do Estado o mesmo empenho que coloca nos seus assuntos. Que, em vez de Mário Crespo, o desemprego fosse um problema que teria de ser solucionado. Que, em lugar de uma operação financeira para adquirir a TVI, se empenhasse numa operação financeira para reduzir o défice. Talvez falhasse na mesma, mas ficaríamos com a sensação de que teria feito um esforço maior…”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” do passado dia 11

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Balanço da década

“O primeiro facto saliente acerca da década que agora termina é a resistência que oferece a quem pretenda referir-se a ela. Os anos sessenta são fáceis de designar, assim como os anos setenta ou oitenta, mas "os anos zero" é uma expressão que está ainda à espera de ser cunhada - talvez por ser estranha e, além do mais, imprecisa. Acabamos, portanto, de viver dez anos que não conseguimos denominar. Há males que vêm por bem: quanto menos nos lembrarmos destes dez anos, melhor. Não pode dizer-se que tenha sido uma década memorável. Foram dez anos que começaram, aliás, sob o signo da desilusão: o mundo não acabou no ano 2000, o que frustrou de igual modo os bruxos e aquela gente apreciadora dos grandes eventos. Os americanos bem tentaram, elegendo George Bush logo no primeiro ano da década, e deve reconhecer-se ele fez um esforço notável, mas, como em quase tudo o resto, fracassou. Outra desilusão, talvez maior ainda, foi provocada pelos escritores de ficção científica. Anos e anos a escreverem sobre o século XXI, que afinal é igualzinho ao século XX mas com mais telemóveis. O tamanho do nosso crânio não aumentou, não vestimos todos de igual, não viajamos em naves. O futuro chegou e, não há como negá-lo, é aborrecido. Não só não viajamos em naves como passou a ser mais difícil viajar de avião. As viagens aéreas, que a ficção científica previa cada vez mais sofisticadas e rápidas, por causa dos atentados de 11 de Setembro de 2001 tornaram-se bastante mais lentas e rudimentares. Em lugar de homens do futuro que entram em naves rodeados de fumo e munidos de aparelhos altamente tecnológicos, somos homens do passado que entram nos aviões descalços, sem o cinto das calças e impedidos de levar até uma garrafa de água. Entretanto, nem tudo são más notícias: a justiça portuguesa aproximou-se do nível da justiça internacional. Não, evidentemente, por ser ter tornado mais rápida, mas porque a justiça internacional se tornou vagarosa. Milosevic e Pinochet foram julgados por crimes contra a humanidade, tendo falecido antes de conhecerem o veredicto. Se pensarmos que Pinochet morreu com 91 anos, o processo Casa Pia deixa de parecer tão demorado, embora tenha ocupado sete anos desta década e ameace ocupar vários da próxima. Após a intervenção americana no Iraque, Saddam Hussein foi democraticamente executado por um grupo de alegres convivas. Pareceu apropriado que, tendo a guerra sido feita a pretexto de armas de destruição maciça imaginárias, a democracia imposta fosse, também ela, pouco mais que uma fantasia. O enforcamento foi filmado pelo telemóvel de um dos carrascos e colocado no YouTube. Foi dos filmes mais vistos do ano, juntamente com um em que dois gatinhos brincam com um novelo. Na internet, o aparecimento das redes Hi5, Facebook, Orkut e Twitter, entre outras, permitem que pessoas com pouco jeito para fazer amigos na vida real consigam fazê-los no computador, e que as pessoas com pouco jeito para fazer amigos na vida real e no computador critiquem duramente este tipo de rede. O aparecimento da Wikipedia, uma enciclopédia feita por gente que não domina especialmente qualquer área do saber, deu ao cidadão comum a satisfação de sentir que os seus conhecimentos são, muitas vezes, superiores aos dos enciclopedistas. Nas entradas da Wikipedia que utilizei para fazer este balanço da década, o ano de 2003 tem mais datas referentes a aspectos relacionados com os concorrentes do concurso Operação Triunfo do que, por exemplo, aos aspectos da economia mundial. Um negro foi eleito pela primeira vez presidente da Harvard Law Review. Um negro candidatou-se pela primeira vez à presidência dos Estados Unidos. Um negro venceu pela primeira vez as eleições americanas. Infelizmente, foi sempre o mesmo negro. Continuamos sem saber bem se os Estados Unidos e o mundo resolveram parar de discriminar os negros ou só este em particular. Em Portugal, José Sócrates foi eleito pela primeira vez a 20 de Fevereiro de 2005 e começou desde essa data a vestir cada vez melhor e a governar cada vez pior. No entanto, uma vez que sucedeu a Pedro Santana Lopes, durante uns meses chegou mesmo a parecer um bom primeiro-ministro. Nos primeiros cinco minutos do mandato, o nome de José Sócrates não apareceu associado a qualquer escândalo. No futebol, num certo sentido a década foi dominada por Portugal: José Mourinho emergiu como o melhor treinador da actualidade e Cristiano Ronaldo sagrou-se melhor jogador do mundo. Os portugueses impõem-se cada vez mais no futebol mundial e cada vez menos na selecção nacional. E, até agora, foi mais ou menos isto que se passou. Mas tenho esperança de que, nos 15 dias que lhe sobram, a década ainda consiga dar a volta por cima.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de ontem.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

RAP é a “Miss Dezembro” da Playboy

“Veja o leitor o que pode acontecer a um cidadão incauto. A revista Playboy manifestou o desejo de me entrevistar. Como todas as pessoas que não têm nada para dizer, gosto muito de ser entrevistado. Por isso, aceitei. E devo ter dado uma entrevista de tal forma sensual que a Playboy resolveu colocar a fotografia do meu rosto apolíneo na capa. Sim, sim: na capa. No sítio em que costuma estar uma senhora nua, estou eu sozinho. Como sempre costuma acontecer, assim que eu entro as senhoras nuas desaparecem. Sou, portanto, a capa da revista Playboy deste mês. Quando me fui deitar, era um pacato pai de família; quando acordei, era a Miss Dezembro. Uma coisa é eu ser um humorista; outra é a minha vida ser ridícula. Deus sabe quanto tenho tentado separar as águas, mas tem sido quase sempre em vão.
Não sei quantos leitores perdeu a Playboy com esta capa, mas posso garantir que perdeu um: eu não compro aquilo, de certeza. Por um lado, é óbvio que as fotografias foram submetidas ao tratamento do photoshop e outras ferramentas de correcção de imagem: o meu nariz tem bastante mais celulite do que parece ali. Por outro, impressiona-me que este seja, até agora, o maior sinal de que o momento que vivemos é mesmo grave. A Playboy, especialista na divulgação de mulheres nuas, publica, este mês, um homem (se isto é um homem) vestido. É bem verdade que a crise não é apenas financeira - é também uma crise de valores. Esta interrupção súbita e sem aviso da exploração do corpo feminino é, evidentemente, imoral. Eu sempre gostei de explorações. E gosto mais ainda do corpo feminino, um gosto que é exacerbado pelo pouco contacto que tenho com ele. Ver-me agora envolvido na suspensão das actividades exploratórias é uma mancha de que a minha biografia não precisava.
A Playboy justifica o despautério com o facto de me ter eleito homem do ano, uma ofensa que 2009, por muito mau que tenha sido, não merecia. Significa isto que, no espaço de um mês, fui distinguido pela ILGA e pela Playboy. O mundo homossexual e o mundo heterossexual deram as mãos e convergiram na necessidade urgente de me agraciar. Que se passa com o mundo? Homossexuais e heterossexuais têm tido, desde sempre, discordâncias, conflitos, tensões. Quando finalmente concordam, dá isto. É bom que os apreciadores da paz e da concórdia façam uma reflexão profunda sobre as ideias que defendem. O que em teoria é bonito, na prática pode ser grotesco.
Resta a curiosidade de saber como vai este número da Playboy trilhar o seu caminho. Que mecânicos irão buscar o martelo e os pregos para pendurarem a minha entrevista na parede das suas oficinas? Que adolescentes se entusiasmarão, no recato dos seus quartos, com as minhas opiniões sobre o sentido da vida? E, a mim, sobra-me o consolo amargo de, finalmente, poder dizer que já tive intimidades com uma capa da Playboy.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” da passada quinta-feira (10 de Dezembro)
A ilustrar este texto, poderia colocar a capa da Playboy de Dezembro, mas como o frio, para já, resolveu o problema das formigas no açucareiro, em nome da “reflexão profunda” a que o Ricardo apela optei antes por uma foto da GQ de Novembro.

[Helena Costa]

domingo, 29 de novembro de 2009

“Escândalos: vantagens e vantagens ainda maiores”

"Há mais de dez minutos que não vem a público um escândalo envolvendo o nome de José Sócrates. Que se passa com este país? O escândalo Face Oculta perdeu o encanto inicial, o escândalo Freeport deixou de produzir notícias, o escândalo das escutas ao Presidente da República esmoreceu, o escândalo da Universidade Independente parece estar parado, o escândalo das casas projectadas na Guarda prometeu mais do que cumpriu, e confesso já ter esquecido o que estava em causa no escândalo Cova da Beira. Julgo falar em nome de todos quando digo que precisamos urgentemente de um novo escândalo. José Sócrates, certamente, não se importa: o primeiro-ministro parece ter tomado uma vacina contra os escândalos. Não há suspeita de indecência escabrosa à qual ele seja vulnerável. Políticos menos resistentes já foram obrigados a demitir-se por causa de anedotas, de sisas que afinal tinham pago, de corninhos. O primeiro-ministro transita de escândalo em escândalo como Tarzan de liana em liana. Nenhum homem é uma ilha, diz o poeta, mas José Sócrates é um homem rodeado de escândalos por todos os lados. Não há escândalo que consiga verdadeiramente furar a barreira de escândalos que o rodeia. Aparece um escândalo novo e a opinião pública boceja: já vimos melhor. Surge uma suspeita inédita e o País encolhe os ombros: podia ser mais escandalosa. Estar envolvido num escândalo é grave; estar metido em vários é uma garantia de segurança. O povo conhece José Sócrates há já algum tempo e sabe que ele pode estar envolvido num escândalo, mas duvida que ele tenha a iniciativa, o desembaraço e a capacidade de trabalho para estar envolvido em tantos. O problema da oposição é, justamente, de abundância: encontra-se perante os escândalos como o burro de Buridan em frente ao feno. De todos os paradoxos filosóficos em que comparecem asnos, este é o meu preferido: o burro faminto tem diante de si dois montes de feno exactamente iguais. Não havendo uma razão para optar por um em vez de outro, é incapaz de escolher e morre de fome. No caso de Sócrates, os escândalos são os montes de feno e a oposição é o burro (há acasos felizes na vida de quem se entretém a compor símiles). A única diferença é que o burro morre sossegado, enquanto os dirigentes dos partidos da oposição definham aniquilando-se mutuamente. Mas ninguém espera que os militantes do PSD tenham o discernimento de um burro."
Ricardo Araújo Pereira, na "Visão" da passada quinta-feira (26 de Novembro)

sábado, 17 de outubro de 2009

Obama, Nobel da Paz? Porque não?

Quando ouço tanta gente a perguntar – Obama, Nobel da Paz? Porquê? – apetece-me responder com outra pergunta – Porque não? Até acho que foi das melhores escolhas das últimas décadas. Quem parece concordar comigo é o Ricardo Araújo Pereira que escreveu assim, na “Visão” da passada quinta-feira: “A atribuição do prémio Nobel da Paz a Barack Obama é, evidentemente, absurda. É inconcebível que o recém-eleito presidente dos Estados Unidos tenha recebido o prémio Nobel. Especialmente, é inconcebível que o tenha recebido antes de vencer um Óscar, de ganhar a Bota de Ouro e de ser coroado Miss Portugal. Que se passa com a academia de Hollywood, a Liga de Futebol Profissional e o júri do popular concurso de beleza para não terem ainda premiado Barack Obama? Como é possível que Obama esteja há quase um ano na Casa Branca e tenha vencido apenas um prémio Nobel? E logo o da Paz, que não exige qualquer mérito da parte do premiado - nem sequer o mérito de promover a paz, conforme se constata pelo facto de Henry Kissinger ter recebido o galardão em 1973. Porque não o da Literatura, se as suas autobiografias (as 23) estão escritas num estilo tão elegante e enxuto? Porque não o da Economia, o da Química ou da Medicina? Pode perguntar-se: que fez ele para vencer o Nobel da Economia, da Química ou da Medicina? E pode responder-se: o mesmo que fez para ganhar o da Paz. As candidaturas para o prémio Nobel da Paz são entregues em Fevereiro. Barack Obama tomou posse como presidente dos Estados Unidos no final de Janeiro. Em duas ou três semanas, Obama teve uma acção suficientemente meritória para ganhar o Nobel da Paz. Que fez ele? A resposta é clara: nada. Não ordenou retiradas, mas também não ordenou ataques. Não ordenou nada, o que já é bem bom. Um estadista que não faça nada tem, hoje, um valor inestimável. Há quem diga que o prémio foi atribuído a Obama como sinal de esperança no que o presidente americano poderá fazer no futuro. Sinceramente, não creio. Julgo que o comité norueguês atribuiu o prémio agora por uma questão de oportunidade: há que aproveitar enquanto é tempo. Normalmente, é uma questão de meses até o presidente dos Estados Unidos lançar o país numa guerra qualquer. É preciso premiá-lo enquanto não começa a rebentar com coisas no Médio Oriente. Por outro lado, é muito curioso que a atribuição do Nobel da Paz a Barack Obama tenha desencadeado uma série de comentários extremamente beligerantes. Raras vezes terá havido tanta discórdia a propósito da Paz. É mais um mérito de Obama: recebe prémios, promove discussões, agita o mundo. E tudo sem se mexer. Minto: há uns meses comprou um cão. Mas imaginem o que acontecerá quando ele começar mesmo a fazer coisas.” De facto, se compararmos Obama com outro norte-americano, recente vencedor do Nobel, Al Gore, constatamos facilmente que em relação a este, Obama leva uma grande vantagem, o seu menor tempo de permanência na alta-roda da política permitiu-lhe um menor acumulado de mentiras. Desta vez, acho que os cinco iluminados do Comité Nobel (a quem compete a escolha) estiveram muito bem, é despachar o prémio cedo, antes que se torne demasiado escandaloso.
Apache, Outubro de 2009

terça-feira, 29 de setembro de 2009

"Abstenho-me do combate à abstenção"

“Os vídeos da Comissão Nacional de Eleições que pretendem convencer os jovens a votar são muito eficazes. O mais interessante é que não são eficazes a combater a abstenção, mas a transmitir aquilo que a CNE acha que é um jovem. Antes de mais nada, há que recordar que, se as pessoas são o antigo povo, os jovens são a antiga canalha. A canalha foi promovida a jovens, o povo foi despromovido a pessoas. Os partidos, que eram afáveis com o povo, são cerimoniosos com as pessoas. Mesmo correndo o risco de parecer a minha avó, vejo-me forçado a começar a próxima frase com a expressão "no meu tempo". No meu tempo (cá está), todos os cartazes e pichagens de parede tratavam o povo por tu. Até o CDS pedia, muito coloquialmente, "Vota CDS". Agora, até o PCP trata as pessoas com cerimónia, e não arrisca mais do que um educado "Vote PCP". O povo era da família - logo, tratava-se por tu, como fazem as famílias, com excepção das que residem em Cascais. O povo é só um, toda a gente sabe quem é. As pessoas são muitas, e os partidos não podem aspirar a conhecê-las todas. Daí não terem à-vontade para tratá-las por tu. Curiosamente, o mesmo não acontece com os chamados jovens. A política trata os jovens por tu, mas não por razões de familiaridade: um cãozito ou um gato não são tratados com reverência, e a CNE parece prezar os jovens como uma pessoa preza o seu animal de estimação: fazem umas habilidades giras, e às vezes parecem mesmo uma pessoa, mas continuam a ser um animal irracional. Os rapazes e raparigas que protagonizam os anúncios da CNE desempenham o papel de jovem na perfeição. Num dos vídeos, um jovem chega a uma boutique e, por não ter escolhido a roupa em tempo útil (aparentemente, no mundo deste jovem as pessoas têm um período específico para fazer a selecção da indumentária, passado o qual a escolha se torna irreversível), vê-se forçado a aceitar a escolha do alfaiate, que o obriga a trocar os andrajos que trazia por um fato e gravata. Ou seja, deixando o alfaiate escolher por ele, o miúdo ficou mais bem vestido. É possível que esta não seja a melhor forma de passar a mensagem "Não deixes que decidam por ti", o que me parece excelente. Pensando bem, a mensagem da CNE deteriora a democracia, na medida em que alerta as pessoas para o facto de os seus concidadãos não serem de fiar, e tomarem decisões que nos prejudicam. No entanto, o vídeo, na sua feliz incompetência, transmite a ideia contrária - que é, de facto, uma ideia admirável. Os partidos em que eu voto nunca ganharam uma eleição. Essa é, aliás, uma das razões pelas quais voto neles com tanto sossego. Significa isto que, mesmo tendo votado em todas as eleições, houve sempre alguém que decidiu por mim - o que é correctíssimo. Uma pessoa decidir o destino do país por nós, é ditadura; quando é a maioria que decide, isso chama-se democracia. Os outros sempre decidiram por mim, e ainda bem. Eu não quero carregar sozinho o fardo de decidir. Eu - e, sobretudo, Portugal - estamos muito melhor assim.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de 17 de Setembro
Contrariamente ao Ricardo, em tempos, votei no partido vencedor. Tinha aproximadamente a idade destes jovens do vídeo da CNE. Serviu-me de lição.
Apache, Setembro de 2009

sábado, 29 de agosto de 2009

Os cartazes da pré-campanha eleitoral

“O cartaz do PS é uma reprodução da bandeira nacional, mas com senhoras verdes à esquerda, senhoras vermelhas à direita, e José Sócrates no lugar da esfera armilar. É possível que as senhoras verdes estejam verdes de fome, e as senhoras vermelhas estejam vermelhas de irritação por estarem desempregadas. Mas tanto as senhoras verdes como as senhoras vermelhas olham para o primeiro-ministro com benevolência, o que leva a acreditar que se trata de uma fotomontagem. Na testa de uma das senhoras vermelhas está o slogan: "Avançar Portugal". Uma agramaticalidade que pode ser mais um efeito da insatisfação social: tendo em conta o estado a que chegou a relação entre o Governo e os professores, é natural que não tenha havido ninguém a avisar o PS de que "Avançar Portugal" não é das frases mais escorreitas que já foram escritas no nosso idioma. Em contraponto, os cartazes do PSD apresentam desde logo uma vantagem cromática: são os únicos que incluem uma senhora que não está verde nem vermelha. Manuela Ferreira Leite aparece com a sua cor natural ao lado de frases que o PSD recolheu junto daquela entidade a que antigamente se chamava "povo" e a que hoje se chama "pessoas". Antes das frases, para que não haja dúvidas sobre a sua autoria, diz: "Ouvimos os Portugueses", assim mesmo, com maiúscula. O PSD, à semelhança do que sucede com os outros partidos, aproveita a campanha para ouvir os portugueses, e faz questão de os escutar com particular atenção agora, uma vez que vai passar os próximos cinco anos a ignorá-los. Há um tempo para tudo. O cartaz do PCP contém a palavra "Mudança" (change, em inglês), e a frase "Sim, podemos ter uma vida melhor" (em inglês, "Yes, we can", etc.). Onde é que eu já ouvi isto? Não me lembro, mas parece-me que a fotografia do cartaz mostra um Jerónimo de Sousa bastante mais bronzeado do que é costume. A campanha dos comunistas portugueses usa os mesmos lemas que a campanha do chefe do imperialismo americano, facto que mais uma vez me obriga a constatar que não percebo nada de política. O cartaz mais arriscado é o do CDS. Ao lado da fotografia de Paulo Portas aparece a frase "Há cada vez mais pessoas a pensarem como nós". "Sim, mas são todos sócios da Autocoope", dirão os cínicos que sistematicamente identificam o discurso do CDS com o dos taxistas. O certo é que a mensagem do cartaz é arriscada na medida em que, para chegar à conclusão de que há cada vez mais pessoas a pensar como o CDS, os democratas-cristãos tiveram forçosamente que fazer uma sondagem. Ora, os democratas-cristãos têm-nos dito com muita insistência que não devemos fiar-nos nas sondagens. Que fazer? Eis um cartaz que estimula o pensamento político mas também o filosófico. Quanto ao Bloco, que eu tenha visto, não tem ainda novos cartazes com as suas principais caras. O Bloco tem, evidentemente, caras para pôr em cartazes, mas talvez não saiba ainda quais dessas caras vão estar nos cartazes do PS. Há que esperar e ver quem sobra.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” do passado dia 27

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A pedagogia da DGS

“A tão negligenciada literatura de casa de banho acaba de obter o significativo patrocínio do Estado. O recente panfleto que a Direcção-Geral de Saúde espalhou por todas as casas de banho públicas do País é, antes de tudo, inquietante - como toda a boa literatura deve ser. Intitulado "Como lavar as mãos?", o texto começa por ser magistral no modo como manipula a arrogância do leitor para, em primeiro lugar, provocar o riso. Um riso que depressa se torna amargo: em poucos segundos, o mesmo leitor que intimamente escarneceu da intenção de quem se propunha ensinar-lhe insignificâncias é tomado pelo assombro de verificar que nunca, em toda a vida, teve as mãos verdadeiramente lavadas. O panfleto apresenta um plano de lavagem das mãos em 12 (doze) passos, incluindo manobras de esterilização com as quais o cidadão médio jamais terá sonhado. Não haja dúvidas: estamos perante um compêndio da higiene manual e digital, uma bíblia da desinfecção do carpo e metacarpo. Este detalhado e rigoroso guia não deixa nem uma falangeta por purificar. Mas - e isto é que é terrível -, ao mesmo tempo que o faz, esfrega-nos na cara a nossa imundície passada e presente. Ao primeiro passo da boa lavagem de mãos é atribuído, misteriosamente, o número zero: "Molhe as mãos com água." Trata-se, é claro, de um momento propedêutico em relação à lavagem propriamente dita, mas não deixa de ser surpreendente que a Direcção-Geral de Saúde não lhe reconheça dignidade suficiente para lhe atribuir um número natural. O passo número um vem então a ser o seguinte: "Aplique sabão para cobrir todas as superfícies das mãos." É aqui que começa a vergonha. Quem sempre ensaboou não deixará de sentir a humilhação de nunca ter aplicado sabão. A instrução encontra na linguística um cruel elemento diferenciador do grau de asseio: quem sabe lavar-se aplica sabão; os porcos ensaboam-se. Porcos esses que, como é óbvio, olham pela primeira vez para as mãos como extremidades dotadas de uma pluralidade de superfícies. No passo número dois ("Esfregue as palmas das mãos, uma na outra", recomendação acompanhada de um desenho em que duas mãos se esfregam em movimentos circulares contrários ao movimento dos ponteiros do relógio), quem sempre esfregou no sentido inverso, como é o meu caso, sente que desperdiçou uma vida inteira de higiene pessoal. Os passos seguintes fazem o mesmo, embora em menor grau: em terceiro lugar há que "esfregar a palma da mão direita no dorso da esquerda, com os dedos entrelaçados, e vice-versa"; o quarto passo apela a que se esfregue "palma com palma com os dedos entrelaçados"; e o quinto passo aconselha uma fricção da "parte de trás dos dedos nas palmas opostas com os dedos entrelaçados". Bem ou mal, com os dedos mais ou menos entrelaçados, estes passos descrevem esfregas que estão ao alcance da imaginação de qualquer pessoa. A partir daqui, o caso piora de novo. O passo seis determina que se "esfregue o polegar esquerdo em sentido rotativo, entrelaçado na palma direita e vice-versa", em movimentos semelhantes aos que se fazem quando se acelera numa motorizada, e o passo sete recomenda que se "esfregue rotativamente para trás e para a frente os dedos da mão direita na palma da mão esquerda e vice-versa". O cuidado posto nestes preceitos amesquinha quem até aqui se limitava a esfregar as mãos uma na outra, descurando, por exemplo, o papel que os dedos devem desempenhar, e logo rotativamente, na higiene. Enxaguar as mãos é o passo oito. Secar as mãos com toalhete descartável, o passo nove. Mas o passo dez volta a revelar que o processo é complexo: "Utilize o toalhete para fechar a torneira, se esta for de comando manual." A torneira deve, por isso, continuar a correr durante todo o passo nove, provavelmente para prevenir eventuais emergências de enxaguamento, sendo fechada apenas no passo dez. O décimo primeiro passo é o mais interessante: "Agora as suas mãos estão limpas e seguras." A contemplação da limpeza e segurança das mãos constitui, portanto, um passo autónomo neste processo de lavagem manual. No fim da lavagem, falta apenas, com as mãos impecavelmente limpas (e seguras), sair da casa de banho abrindo a porta em que toda a gente mexeu. E, creio, voltar atrás para repetir o processo.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão”, de ontem (20 de Agosto)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Pluralismo ideológico

“(…) José Sócrates, primeira figura do partido socialista, considera que Durão Barroso fez um bom trabalho e deve manter-se no cargo. Vital Moreira, primeiro nome na lista do PS para as eleições europeias, acha que Durão Barroso deve sair. Sócrates quer um presidente da nossa raça (para usar uma expressão cara ao Presidente da República), Vital Moreira quer um da sua cor. Certos leitores poderão perguntar: como pode um partido apresentar-se a eleições manifestando simultaneamente uma determinada intenção e a intenção rigorosamente inversa? Censuro a perfídia destes leitores. Desconhecem aquilo a que os cientistas políticos chamam um ‘catch-all party’: um partido político que, com o objectivo de captar o maior número possível de eleitores, renuncia a qualquer ideologia. A originalidade do PS está neste pormenor engenhoso: o partido socialista não rejeita quaisquer ideologias, antes as subscreve a todas (com excepção, talvez, da socialista). O cidadão deseja que Barroso continue? Vote no PS, que tudo fará para o apoiar. Pretende ver Barroso fora da Comissão? Vote no PS, que eles também não querem lá esse bandido. Considera que Barroso deve presidir à Comissão Europeia apenas às segundas, quartas e sextas, cedendo o lugar a, digamos, uma peça de fruta às terças, quintas e sábados? Vote no PS, que há-de haver alguém lá dentro que defende essa orientação. A bem dizer, tanto Sócrates como Vital Moreira sustentam posições compreensíveis: se Durão Barroso sair da Comissão Europeia, Sócrates sabe que, em lugar de ficar obrigado a criar 150 000 empregos, terá de arranjar 150 001, para ocupar mais um desempregado; Vital Moreira não esquece que Durão Barroso mudou do PCTP-MRPP para o PSD e, na qualidade de militante do PCP que passou para o lado do PS, não apreciará vira-casacas. (…)”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de ontem (16/04/2009)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

“O maior partido da oposição a si mesmo”

“Se José Sócrates tivesse tanto talento para elevar os índices de crescimento do País como tem para fazer crescer o PS nas sondagens, Portugal era a Noruega. Por outro lado, mesmo com o País mergulhado na crise e o Governo atolado em escândalos, as sondagens continuam a ser antipáticas para o PSD. É possível que os cidadãos estejam descontentes com o Governo, mas uma vez que a orientação política deste PS é tão semelhante à do PSD, talvez os eleitores fiquem na dúvida sobre quem devem penalizar. Creio, aliás, que a grande divergência entre o PSD e o Governo não é política. Aquilo que os sociais-democratas não perdoam é isto: o que José Sócrates fez ao País não se compara com o que fez ao PSD. Tirando Sócrates, há dois ou três factores que podem explicar o divórcio entre o povo e o PSD. O primeiro é que, para o PSD, não existe povo. Manuela Ferreira Leite não diz a palavra «povo». A presidente do PSD dirige-se sempre às «populações». Talvez as populações votem no PSD, mas o povo não parece especialmente interessado em fazê-lo. E, enquanto Portugal tiver mais povo do que populações, isso pode constituir um problema grave.Em segundo lugar, parece evidente a razão pela qual o PSD não consegue agradar aos portugueses: o PSD tem dificuldade em agradar aos militantes do PSD. Manuela Ferreira Leite não satisfaz os críticos, mas isso é habitual: enquanto um líder partidário não está no poder, aqueles que se lhe opõem no seio do próprio partido abominam todas as suas opções. Só quando o líder forma Governo é que os críticos começam paulatinamente a descobrir fortes pontos de convergência nos quais nunca tinham reparado. Não surpreende, por isso, que, por enquanto, Passos Coelho e Luís Filipe Menezes discordem sistematicamente das opções de Manuela Ferreira Leite, incluindo da opção de dizer «Bom dia». Mais surpreendente é, que sejam os próprios apoiantes de Ferreira Leite a discordar dela. Marcelo acha que a presidente prejudica o partido e está a levá-lo para o abismo, e Pacheco Pereira deplora a escolha de Santana Lopes para a Câmara de Lisboa, embora seja certo que Pacheco Pereira deplora quase tudo o que se passa em todo o lado.Em todo o caso, é particularmente irónico que os sociais-democratas vivam tempos tão difíceis precisamente na altura em que se encontra na política activa, aquele que é, porventura, o mais bem-sucedido político de sempre do PSD. Só é pena que ele seja secretário-geral do PS.”
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” de 12 de Fevereiro

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

"Uma campanha negra alegre"

"Às vezes um ministro engana-se e diz que está em Mafamude quando na realidade se encontra em Gulpilhares. A oposição não perdoa: manifesta indignação porque são duas freguesias de Vila Nova de Gaia absolutamente inconfundíveis, condena a ofensa sem nome que foi feita à boa gente de Gulpilhares (e, até certo ponto, também à de Mafamude), chama o ministro ao Parlamento para que justifique o lapso inaceitável, exige ao chefe de Governo que demita o ministro e ao Chefe de Estado que convoque eleições antecipadas com carácter de urgência. Agora, que recaem suspeitas graves sobre José Sócrates, o PSD veio dizer que tem toda a confiança institucional no senhor primeiro-ministro, Luís Nobre Guedes, do CDS, manifestou apoio e solidariedade e o resto da oposição não disse nada de especial. Quando rebentou o escândalo BPN, foi parecido. Era difícil distinguir a lista de envolvidos nos negócios pouco claros do banco de um conselho de ministros do Governo de Cavaco Silva. O sonho de qualquer militante do PS. E que disse o PS? Nada de especial. Parece evidente que a melhor maneira de promover a concórdia e a cooperação estratégica dos principais partidos é acusar os seus dirigentes de ilícitos graves. Os adversários políticos não perdoam a quem comete lapsos menores, mas dão a mão a quem é acusado de delitos graves. São feitios. A campanha negra, a existir, aparenta ser fruto de geração espontânea. Não há quem não repudie o ataque cobarde e ignóbil a José Sócrates, e andar simultaneamente a orquestrar e a repudiar o ataque seria especialmente cobarde e ignóbil. Mesmo para políticos. Em todo o caso, mais do que investigar o caso Freeport, eu gostaria que fosse investigada a campanha negra sobre o caso Freeport. Os conspiradores, se existem, devem ser detidos. E, depois, condecorados. Isto porque esta campanha negra, na eventualidade de ser real, é a iniciativa mais bem planeada, organizada e executada da política portuguesa. Portugal precisa de gente com este talento e esta capacidade de trabalho na vida política. São profissionais competentes na política, porque sabem escolher os factos mais delicados e a altura mais prejudicial para os revelar, são fortes na diplomacia e nos negócios estrangeiros, pela facilidade com que envolveram a polícia inglesa, e são rigorosos a ponto de desencantarem mails com mais de três anos quando eu tenho dificuldade em lembrar-me dos que recebi ontem. Menos dos que incluem fotografias de senhoras nuas. É possível que os autores da campanha negra sejam os melhores políticos portugueses das últimas cinco ou seis décadas."
Ricardo Araújo Pereira, na “Visão” do passado dia 5 de Fevereiro

sábado, 31 de janeiro de 2009

"Yes we cão"

“Apesar do silêncio ciumento que os meios de comunicação internacionais lançaram sobre o assunto, a notícia mais importante da actualidade não escapou aos nossos jornalistas: em princípio, existe a possibilidade de, se calhar, Obama vir a ter talvez um cão quiçá português. Há reportagens sobre criadores, entrevistas com veterinários, perfis de exemplares da raça. E é quase certo que se está a preparar uma investigação de fundo sobre a displasia da anca e carraças em geral. Que Obama teve a capacidade de mobilizar os americanos toda a gente sabia; que seria capaz de mobilizar os portugueses era mais difícil de prever. Aos americanos, prometeu livrá-los da pior crise de que há memória; a nós, disse que ia arranjar um cão. Para uns, houve oratória empolgante, patriotismo místico, um projecto histórico comum; para outros, tomem lá um bicho. Bicho esse que é nosso compatriota mas que, ainda assim, continua sendo um bicho. Não se pode dizer que sejamos um povo ao qual é difícil agradar. No entanto, a manobra, apesar de engenhosa, pode sair cara a Obama. É verdade que conquistou o povo português usando a estratégia com que os pais conquistam filhos de seis anos. Mas, uma vez adquirido o animal, o nosso herói deixará de ser Obama. Depois do Manchester de Cristiano Ronaldo e do Inter de Mourinho, também os Estados Unidos serão doravante designados como a América de Bobi. Continuará a haver cimeiras, mas os chefes de Estado reunir-se-ão na Casa Branca de Piloto. E os encontros decorrerão, de certeza, na Sala Oval de Pantufa. Qualquer vitória de Obama será também nossa, por via canina. Atrás de um grande homem há sempre um grande canídeo, como diz o ditado. A sorte de Obama é não ter tomado uma decisão definitiva sobre o bicho antes da cerimónia de investidura como novo Presidente. Se, por esta altura, o cão de origem portuguesa já fosse o animal de estimação da família Obama, boa parte dos nossos jornais exibiriam uma fotografia da tomada de posse e a legenda: «Preto jura a constituição sob o olhar do Bolinhas.» Bom, talvez não esteja a ser rigoroso. Para efeitos de comédia, distorci a tendência subtil dos jornais nacionais para celebrar tudo o que é português no estrangeiro. O mais provável é que a legenda dissesse «sob o olhar inteligente e meigo do Bolinhas». Ficaria triste, contudo, se o leitor concluísse daqui que alguma coisa me move contra o putativo cão português de Barack Obama. Nada disso. Será mais um a prestigiar o País no estrangeiro, a levar o nome de Portugal mais longe – e, tenho a certeza, com uma dignidade de que poucos se podem gabar. É certo que será mais um português a quem o Presidente americano dará ordens e ensinará a rebolar quando quiser. Nisso, o cão não se distinguirá especialmente de Durão Barroso. Mas, por uma vez, será o Presidente americano a andar atrás de um português para lhe limpar o cocó, em vez do contrário. Nisso, o cão distinguir-se-á bastante de Durão Barroso. Sim, tenho as maiores esperanças no bom desempenho do cachorro. Por mim, Cavaco pode começar a preparar uma comenda de pôr na coleira. Aqui para nós, sempre tem melhor destinatário do que muitas que ele tem atribuído.”
Ricardo Araújo Pereira, na revista “Visão” de 22 de Janeiro de 2009

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

"A crise está em crise" - Ricardo Araújo Pereira

"A todos os executivos que mantiveram Portugal em crise desde 1143 até hoje, muito obrigado.
Ou estou fortemente enganado (o que sucede, aliás, com uma frequência notável), ou a história de Portugal é decalcada da história de Pedro e o Lobo, com uma pequena alteração: em vez de Pedro e o Lobo, é Pedro e a Crise.
De acordo com os especialistas – e para surpresa de todos os leigos, completamente inconscientes de que tal cenário fosse possível – Portugal está mergulhado numa profunda crise. Ao que parece, 2009 vai ser mesmo complicado. O problema é que 2008 já foi bastante difícil. E, no final de 2006, o empresário Pedro Ferraz da Costa avisava no Diário de Notícias que 2007 não iria ser fácil. O que, evidentemente, se verificou, e nem era assim tão difícil de prever tendo em conta que, em 2006, analistas já detectavam que o País estava em crise. Em Setembro de 2005, Marques Mendes, então presidente do PSD, desafiou o primeiro-ministro para ir ao Parlamento debater a crise económica. Nada disto era surpreendente na medida em que, de acordo com o Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal, entre 2004 e 2005, o nível de endividamento das famílias portuguesas aumentou de 78% para 84,2% do PIB. O grande problema de 2004 era um prolongamento da grave crise de 2003, ano em que a economia portuguesa regrediu 0,8% e a ministra das Finanças não teve outro remédio senão voltar a pedir contenção. Pior que 2003, só talvez 2002, que nos deixou, como herança, o maior défice orçamental da Europa, provavelmente em consequência da crise de 2001, na sequência dos ataques terroristas aos Estados Unidos. No entanto, segundo o professor Abel M. Mateus, a economia portuguesa já se encontrava em crise antes do 11 de Setembro. A verdade é que, tirando aqueles seis meses da década de 90 em que chegaram uns milhões valentes vindos da União Europeia, eu não me lembro de Portugal não estar em crise. Por isso, acredito que a crise do ano que vem seja violenta. Mas creio que, se uma crise quiser mesmo impressionar os portugueses, vai ter de trabalhar a sério. Um crescimento zero, para nós, é amendoins. Pequenas recessões comem os portugueses ao pequeno-almoço. 2009 só assusta esses maricas da Europa que têm andado a crescer acima dos 7 por cento. Quem nunca foi além dos 2%, não está preocupado. É tempo de reconhecer o mérito e agradecer a governos atrás de governos que fizeram tudo o que era possível para não habituar mal os portugueses. A todos os executivos que mantiveram Portugal em crise desde 1143 até hoje, muito obrigado. Agora, somos o povo da Europa que está mais bem preparado para fazer face às dificuldades."
Ricardo Araújo Pereira, na "Visão" de 11/12/2008

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

"Circunspecção de mau gosto" - Ricardo Araújo Pereira

"Julgo que a opinião da directora da DREN, Margarida Moreira, segundo a qual a ameaça a uma professora com uma arma de plástico foi uma brincadeira de mau gosto, é uma brincadeira de mau gosto. Mais uma vez se prova que a crítica de cinema é extremamente subjectiva. Eu também vi o filme no YouTube e não dei pela brincadeira de mau gosto. Vi dois ou três encapuzados rodearem uma professora e, enquanto um ergue os punhos e saltita junto dela, imitando um pugilista em combate, outro aponta-lhe uma arma e pergunta: «E agora, vai dar-me positiva ou não?» Na qualidade de apreciador de brincadeiras de mau gosto, fiquei bastante desapontado por não ter detectado esta, antes da ajuda de Margarida Moreira. Vejo-me então forçado a dizer, em defesa das brincadeiras de mau gosto, que, no meu entendimento, as brincadeiras de mau gosto têm duas características encantadoras: primeiro, são brincadeiras; segundo, são de mau gosto. Brincar é saudável, e o mau gosto tem sido muito subvalorizado. No entanto, aquilo que o filme captado na escola do Cerco mostra aproxima-se mais do crime do que da brincadeira. E os crimes, pensava eu, não são de bom-gosto nem de mau gosto. Para mim, estavam um pouco para além disso – o que é, aliás, uma das características encantadoras dos crimes. Se, como diz Margarida Moreira, o que se vê no vídeo se enquadra no âmbito da brincadeira de mau gosto, creio que acaba de se abrir todo um novo domínio de actividade para milhares de brincalhões que, até hoje, estavam convencidos, tal como eu, que o resultado de uma brincadeira é ligeiramente diferente do efeito que puxar de uma arma, mesmo falsa, no Bairro do Cerco, produz. O mais interessante é que Margarida Moreira, a mesma que agora vê uma brincadeira de mau gosto no que mais parece ser um delito, é a mesma que viu um delito no que mais parecia ser uma brincadeira de mau gosto. Trata-se da mesma directora que suspendeu o professor Fernando Charrua por, numa conversa privada, ele ter feito um comentário desagradável, ou até insultuoso, sobre o primeiro-ministro. Ora, eu não me dou com ninguém que tenha apontado uma arma de plástico a um professor, mas quase toda a gente que conheço já fez comentários desagradáveis, ou até insultuosos, sobre o primeiro-ministro. Se os primeiros são os brincalhões e os segundos os delinquentes, está claro que preciso de arranjar urgentemente novos amigos."
Ricardo Araújo Pereira, na "Visão"

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

"A banca nacionalizou o governo" - Ricardo Araújo Pereira

"Quando, no passado domingo, o Ministério das Finanças anunciou que o Governo vai prestar uma garantia de 20 mil milhões de euros aos bancos até ao fim do ano, respirei de alívio. Em tempos de gravíssima crise mundial, devemos ajudar quem mais precisa. E se há alguém que precisa de ajuda são os banqueiros. De acordo com notícias de Agosto deste ano, Portugal foi o país da Zona Euro em que as margens de lucro dos bancos mais aumentaram desde o início da crise. Segundo notícias de Agosto de 2007, os lucros dos quatro maiores bancos privados atingiram 1,137 mil milhões de euros, só no primeiro semestre desse ano, o que representava um aumento de 23% relativamente aos lucros dos mesmos bancos em igual período do ano anterior. Como é que esta gente estava a conseguir fazer face à crise sem a ajuda do Estado é, para mim, um mistério. A partir de agora, porém, o Governo disponibiliza aos bancos dinheiro dos nossos impostos. Significa isto que eu, como contribuinte, sou fiador do banco que é meu credor. Financio o banco que me financia a mim. Não sei se o leitor está a conseguir captar toda a profundidade deste raciocínio. Eu consegui, mas tive de pensar muito e fiquei com dor de cabeça. Ou muito me engano ou o que se passa é o seguinte: os contribuintes emprestam o seu dinheiro aos bancos sem cobrar nada, e depois os bancos emprestam o mesmo dinheiro aos contribuintes, mas cobrando simpáticas taxas de juro. A troco de apenas algum dinheiro, os bancos emprestam-nos o nosso próprio dinheiro para que possamos fazer com ele o que quisermos. A nobreza desta atitude dos bancos deve ser sublinhada. Tendo em conta que, depois de anos de lucros colossais, a banca precisa de ajuda, há quem receie que os bancos voltem a não saber gerir este dinheiro garantido pelo Estado. Mas eu sei que as instituições bancárias aprenderam a sua lição e vão aplicar ajuizadamente a ajuda do Governo. Tenho a certeza de que os bancos vão usar pelo menos parte desse dinheiro para devolver aos clientes aqueles arredondamentos que foram fazendo indevidamente no crédito à habitação, por exemplo, e que ascendem a vários milhares de euros no final de cada empréstimo. Essa será, sem dúvida nenhuma, uma prioridade. Vivemos tempos difíceis, e julgo que todos, sem excepção, temos de dar as mãos. Por mim, dou as mãos aos bancos. Assim que eles tirarem as mãos do meu bolso, dou mesmo."
Ricardo Araújo Pereira

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Jumbo e IKEA - Ricardo Araújo Pereira

Aqui por estas bandas, há pouco mais de um mês, o hipermercado Jumbo teve a ideia de abrir umas caixas onde é o cliente quem tem de efectuar todas as operações inerentes ao registo e pagamento dos produtos que pretende adquirir. Como o povo (que dizem, é de brandos costumes) não se fez ouvir com a intensidade sonora que se impunha, esta semana a nova moda é ser também o cliente a pesar os vegetais e frutos e a etiquetá-los. Dizem que é inovação tecnológica. Onde é que eu já ouvi isto? Certamente a um gajo cujo coeficiente de inteligência raia a mesma mediocridade que a dos gestores desta loja. Palpita-me que, ou os clientes mudam de loja, ou um destes dias, à entrada do hipermercado está alguém a distribuir um balde e uma esfregona para que cada cliente limpe os corredores por onde passa, antes de abandonar a loja. Com estas medidas, o hipermercado reduz o número de funcionários, poupa em salários e maximiza os lucros. O texto que apresento a seguir (já com uns meses mas igual actualidade), bem mais humorado, refere-se às lojas IKEA e descreve um tipo de actuação similar, a esperteza em substituição da inteligência, ou a gestão à boa maneira do artista de Vilar de Maçada…
“Os problemas dos clientes do IKEA começam no nome da loja. Diz-se «Iqueia» ou «I quê à»? E é «o» IKEA ou «a» IKEA? São ambiguidades que me deixam indisposto. Não saber a pronúncia correcta do nome da loja em que me encontro inquieta-me. E desconhecer o género a que pertence gera em mim uma insegurança que me inferioriza perante os funcionários. Receio que eles percebam, pelo meu comportamento, que julgo estar no «I quê à», quando, para eles, é evidente que estou na «Iqueia». As dificuldades porém, não são apenas semânticas mas também conceptuais. Toda a gente está convencida de que o IKEA vende móveis baratos, o que não é exactamente verdadeiro. O IKEA vende pilhas de tábuas e molhos de parafusos que, se tudo correr bem e Deus ajudar, depois de algum esforço hão-de transformar-se em móveis baratos. É uma espécie de Lego para adultos. Não digo que os móveis do IKEA não sejam baratos. O que digo é que não são móveis. Na altura em que os compramos são um puzzle. A questão, portanto, é saber se o IKEA vende móveis baratos ou puzzles caros. Há dias, comprei no IKEA um móvel chamado Besta. Achei que combinava bem com a minha personalidade. Todo o material de que eu precisava e que tinha de levar até à caixa de pagamento pesava seiscentos quilos. Percebi melhor o porquê do nome do móvel. É preciso vir ao IKEA com uma besta de carga para carregar a tralha toda até à registadora. Este é um dos meus conselhos aos clientes do IKEA: não vá para lá sem duas ou três mulas. Eu alombei com a meia tonelada. O que poupei nos móveis gastei no ortopedista. Neste momento tenho doze estantes e três hérnias. É claro que há aspectos positivos: as tábuas já vêm cortadas, o que é melhor do que nada. O IKEA não obriga os clientes a irem para a floresta cortar as árvores, embora por vezes se sinta que não faltará muito para que isso aconteça. Num futuro próximo, é possível que, ao comprar um móvel, o cliente receba um machado, um serrote e um mapa de determinado bosque na Suécia onde o IKEA tem dois ou três carvalhos debaixo de olho que considera terem potencial para se transformarem numa mesa de cabeceira engraçada. Por outro lado, há problemas de solução difícil. Os móveis que comprei chegaram a casa em duas vezes. A equipa que trouxe a primeira parte já não estava lá para montar a segunda e, a equipa que trouxe a segunda recusou-se a mexer no trabalho que tinha sido iniciado pela primeira. Resultado: o cliente pagou dois transportes e duas montagens e ficou com o móvel incompleto. Se fosse um cliente qualquer, eu não me importaria. Mas como sou eu, aborrece-me um bocadinho. Numa loja que vende tudo às peças (que, por acaso, até encaixam bem umas nas outras) acaba por ser irónico que o serviço de transporte não encaixe bem no serviço de montagem. Idiossincrasias do comércio moderno. Que fazer, então? Cada cliente terá o seu modo de reagir. O meu é este: para a próxima pago com um cheque todo cortado aos bocadinhos e junto um rolo de fita gomada e um livro de instruções. Entrego metade dos confetti num dia e a outra metade no outro. E os suecos que montem tudo se quiserem receber.”
Ricardo Araújo Pereira – “IKEA: Enlouqueça você mesmo”
Apache, Agosto de 2008

sexta-feira, 14 de setembro de 2007