«O ciclo único, a pedagogia única e o poder único»
«As 125 páginas do relatório apresentado ao CNE (Conselho Nacional de Educação) sobre o estudo relativo à educação das crianças dos 0 aos 12 anos foram escritas por académicos ilustres. Constituem por isso uma leitura estimulante, a muitos títulos. Mas no âmbito desta coluna, apenas fará sentido tratar a proposta mais polémica que dele emana, a eventual fusão dos 1º e 2º ciclos do ensino básico, fugindo, quanto possível, da complexidade dos estritos registos académicos e considerando, também quanto possível, as percepções mais comuns dos que estão no terreno.
No relatório refere-se um “contraste violento e repentino entre o regime de monodocência do 1º ciclo e o regime de pluridocência do 2º ciclo” e sugere-se que a fusão dos dois obstaria a “transições bruscas”, inconvenientes para as crianças. Coerentemente, propõem-se um professor único para os dois ciclos, ainda que eventualmente coadjuvado por outros (dois ou três professores na mesma sala, ao mesmo tempo, a dar matérias diferentes, numa animada e pós moderna balbúrdia pedagógica).
Ora sucede, como é público e conhecido, que um professor generalista, concebido para leccionar até ao 6º ano da escolaridade básica, já está a ser formado, infelizmente, na sequência do Decreto-Lei nº 43/2007, de 2 de Fevereiro. Termos em que este estudo veio mesmo a calhar: valida pela voz autorizada de académicos conceituados a temeridade do Governo.
Quanto à natureza brusca da passagem do 1º para o 2º ciclo e aos implícitos inconvenientes que daí resultam, procurei e não encontrei no estudo fundamentação suficiente. Outrossim, o que as estatísticas mostram é que o insucesso escolar é bem mais significativo na transição do 2º para o 3º ciclo. Com efeito, os resultados globalmente obtidos pelos alunos do 5º ano (o da transição brusca) são bem melhores que os conseguidos no 7º ano (altura em que os alunos já estão adaptados ao regime de pluridocência). Mas, mais que isso, teremos todos dificuldade em aceitar este cansativo fado dos traumas das criancinhas. Numa sociedade em que o paradigma imposto, quase como condição de sobrevivência, é o de estarmos preparados para nos adaptarmos e mudarmos constantemente, receamos que aos 9 ou 10 anos de idade, a passagem do regime de classe para o regime de disciplinas autónomas traumatize as crianças? E a deslocação bruta, forçada, de crianças de 6 anos do seu ambiente habitual para escolas distantes e grandes, por jornadas de autêntico “trabalho” infantil que superam em duração o legalmente permitido aos trabalhadores adultos, com dezenas de quilómetros andados para lá e para cá, deixará incólumes corpos e espíritos das indefesas criaturas? Quando a alegada monodocência do 1º ciclo é, aliás, falsa, dado que na maioria das escolas as crianças já têm vários professores, para além do nuclear (educação física, expressões e inglês)?
A verdadeira consequência, a importante, em minha opinião, reside num novo decréscimo do conhecimento que tal sistema originará para as crianças. Um só professor a ensinar Português, Matemática, História; Geografia, Ciências da Natureza e o que mais se verá? O peso da especulação pedagógica em detrimento das tradicionais áreas do conhecimento tem conduzido as crianças portuguesas por tristes veredas de infantilização. O proposto será uma boa achega para a promoção desse pernicioso percurso e para mais uma drástica redução do número de professores em actividade, com a natural e consequente redução significativa dos custos da provisão do ensino básico a que o Estado está obrigado.
Õ cinismo com que o Ministério da Educação reagiu à proposta, dizendo que é prematura a fusão do 1º com o 2º ciclo do ensino básico, é confrangedor, sendo certo que não há muito tempo propôs, ele próprio, isso mesmo e lançou, em conformidade, a já referida formação de professores para os dois ciclos, em regime de monodocência. Mas sob o manto diáfano desta mal disfarçada inocência está o ardiloso avanço, com a necessária preparação da opinião pública, de mais uma investida para poupar cobres, em pura lógica imediatista. Que se lixem as crianças e a Lei de Bases que claramente proíbe a fusão! A maioria absoluta, o desastre de Bolonha e, agora, o CNE são música celestial para os ouvidos dos absolutistas que se sentam na 5 de Outubro.»
Santana Castilho – Professor do Ensino Superior