“O mandato de Maria de Lurdes Rodrigues no ministério da educação teve a característica, aparentemente paradoxal, de ser simultaneamente de continuidade e de ruptura. Esta é mais fácil de descrever do que aquela, uma vez que consistiu basicamente em duas políticas, ambas com raízes extrínsecas à educação e visando fins políticos fora desta área.
A primeira destas políticas - a demonização dos professores - serviu sobretudo o projecto político pessoal de José Sócrates. Tratava-se de arranjar um inimigo interno para congregar a população em torno de um líder supostamente forte (refira-se, a talhe de foice, que expressões como «população» e «opinião pública», relevantes da geografia, da sociologia, da comunicação e do marketing político, calham melhor ao estilo deste governo que a palavra «cidadãos», relevante da política na sua vertente nobre).
A segunda política de aparente ruptura foi, por um lado, uma política de «o que parece é», e por outro, uma política de favorecimento económico e político a diversas clientelas. Refiro-me às chamadas reformas, tecnológicas ou administrativas, que não tiveram nem estão a ter outro efeito que não seja dar dinheiro a ganhar aos parceiros do «Centrão» no regime de «crony capitalism» que se está a consolidar no nosso país. Vejam-se, a título de exemplo, as manigâncias com o Magalhães e as adjudicações referentes à requalificação do parque escolar - negócios de muitos milhões a que só alguns eleitos têm acesso. Noutra vertente, a política, o novo modelo de gestão veio satisfazer os apetites de caciques locais, de quem se espera agora, como contrapartida, um maior empenho político no enraizamento do PSD e do PS por via da multiplicação de comissariados políticos.
De tudo isto, só a melhoria das condições de conforto nas escolas se poderá traduzir num melhor ensino, mas mesmo assim muito menos do que aconteceria se os projectos de engenharia e arquitectura tivessem sido distribuídos a mais empresas e mais pequenas, de um modo mais transparente, e obedecendo a cadernos de encargos na elaboração dos quais tivessem participado os profissionais no terreno, que são quem melhor sabe o que faz falta.
Mas a melhoria do ensino nunca fez parte dos objectivos destas políticas; e mesmo a melhoria da «educação» foi, quando muito, um objectivo subsidiário.
Se as reformas e as rupturas tiveram origens e perseguiram objectivos exteriores ao sistema educativo, as políticas de continuidade nasceram dentro do sistema e tiveram como objectivo agir sobre ele. Maria de Lurdes Rodrigues nunca rompeu com o gigantismo do seu Ministério, nunca afrontou os interesses duma burocracia que tem que produzir sempre mais leis e regulamentos, sem cuidar da sua qualidade, utilidade, coerência ou racionalidade, para manter os empregos (nos escalões mais baixos da hierarquia) ou o poder (nos escalões mais altos). Manteve, sem quaisquer modificações, uma política de manuais escolares que não serve os alunos, os pais ou os professores, mas se enquadra perfeitamente nos interesses dos editores e livreiros. Promoveu e reforçou as correntes pedagogistas mais convenientes ao interesse das Escolas Superiores de Educação (ESSE’s) privadas.
Na sua complacência criminosa com o gigantismo burocrático, com o delírio pedagógico e com o incivismo que grassa nas escolas, Maria de Lurdes Rodrigues não se distinguiu substancialmente de muitos dos seus antecessores. A diferença decisiva está em que estes, embora criados no caldo de cultura das ESE's e do sociologismo, tinham ligações culturais e conceptuais ao exterior deste mundo, ligações estas que lhes permitiam reconhecer pelo menos a existência de algo para além dele. Maria de Lurdes Rodrigues, pelo contrário, só existe neste pequeno mundo e não acredita que haja alguma coisa fora dele. E, não conhecendo outro mundo, também não conhece o seu. Nunca afrontaria a «Nomenklatura» tecnoburocrática do seu ministério porque nem sequer se dá conta da sua existência - tal como um peixe não se dá conta da água.
Por isso foi capaz de assinar um Estatuto da Carreira Docente em que as palavras «ensino» e «ensinar» não aparecem uma única vez - nem sequer na parte em que são enumeradas as vinte e nove tarefas e competências dos professores.
O que deixa Maria de Lurdes Rodrigues para o futuro? Que dirá dela a História?
Dirá, provavelmente, que introduziu mais irracionalidade num sistema que já era irracional. Que se propôs recompensar os bons professores e penalizar os maus, mas impôs para isso uma ferramenta que tem precisamente o efeito oposto. De futuro, se se mantiver o sistema de avaliação e de carreiras que inventou (ou foi copiar ao Chile), os professores beneficiados serão os mais burocratas, os mais carreiristas, os mais chico-espertos, os mais ignorantes, e sobretudo os mais integrados nas redes locais e nacionais de tráfico de influências.
Dirá a História, provavelmente, que foi ela quem abriu aos bárbaros as portas da cidade, entregando nas mãos dos «Isaltinos» e dos «Ferreira Torres» uma das últimas instituições públicas portuguesas que ainda estavam relativamente imunes ao caciquismo e à corrupção. Se a civilização é, como se diz, uma corrida entre a escola e a barbárie, Maria de Lurdes Rodrigues será a ministra que pôs peias e freios à escola. Não foi ministra da educação, foi ministra da barbárie.”