Um testemunho na primeira pessoa
“Caros colegas,
Como sabemos, dadas as condições físicas do edifício da nossa escola, esta (por muito que me custe dizer) é um barracão, ou um conjunto de barracões, de onde se salvam apenas umas quantas salas situadas no bloco/barracão central.
Àqueles que, como eu, dão aulas nas oficinas e seus anexos aplica-se a expressão “o pessoal das barracas”. Até há poucos anos, as “barracas” eram espaços destinados sobretudo aos cursos de Artes, Mecânica e Electricidade, mas parece que agora calha a quase todos ter ali uma, duas ou mais horitas, seja em aula normal, apoio ou TOA.
Desse pessoal faziam parte até há pouco tempo os colegas de Educação Física, que eram assim um misto de “pessoal das barracas” com “sem-abrigo”. Feitas as merecidas, embora bem tardias, obras nos ginásios, agora são apenas “sem-abrigo” a tempo parcial. Claro que deve haver aulas de Educação Física ao ar livre, mas por muito que o ar seja livre… a prática é feita no chão, e o chão dos pátios da nossa escola está vergonhoso e perigoso.
No ano lectivo anterior, eu tinha 16 horas do meu horário numa das “barracas”, que é a Oficina de Artes Visuais; este ano “apenas” 11 horas. Nesse ano, cheguei a levar um termómetro para verificar a temperatura daquela oficina, enquanto uma colega levava outro para a Oficina de Mecânica. O meu, que verifiquei mais tarde ser pouco fiável, nunca desceu abaixo dos 12 graus; o dela chegou algumas vezes aos 9-10 graus. Temperaturas preocupantes, que faziam tremer o corpo e fazer doer músculos e articulações.
Ora, acontece que na sexta-feira, 9 de Janeiro, decidi levar para aquelas oficinas um termómetro que tenho como fiável. Estive por ali entre as 9h e as 9h45m. Em ambas as salas registavam-se 6 graus. Para quem não sabe, 5-6 graus é a temperatura que está no interior dum frigorífico, na parte destinada aos legumes, iogurtes e ovos.
Dali fui para a sala 7, gelado, como é de calcular, dar uma aula de Educação Visual a uma turma de 7º ano. A sala 7 é uma das mais frias do bloco/barracão central do edifício mas, como lá se registavam 13 graus, deu para sentir o corpo a aquecer, ou melhor, a descongelar.
A seguir continuei na mesma sala mas com uma turma de 11º ano que, por acaso, vinha de 90 minutos passados na Oficina de Artes Visuais. Não vou registar as reacções e palavras de vários alunos, nem as propostas de insurreição vindas de alguns, opto apenas por referir que uma das alunas, pálida e a tremer, veio mostrar-me as mãos e disse:
– Professor, olhe para as minhas mãos. Estive a trabalhar na OAV com luvas, e veja como estão. Não sinto estes dedos.
Tinha os dedos mínimos brancos, sem sangue, por inteiro.
Claro que aos alunos (duma turma com bom comportamento) apetecia tudo menos voltar a sentar-se. Andavam pela sala, mexiam-se e falavam como quem procura, de forma irracional, fazer qualquer coisa para “quebrar o gelo”. A vontade de se sentarem, mesmo numa sala com mais sete graus do que a anterior, não era nenhuma. Mas lá se sentaram e a aula acabou por decorrer normalmente, apesar do início tardio.
Ultimamente, tem sido frequente dar aulas na OAV com boina ou gorro e cachecol. O mesmo fazem alunos e alunas, alguns também com luvas. Os dois aquecedores que estão na oficina produzem pouco mais calor do que um isqueiro. A 1m de distância, o ar que as ventoinhas empurram já chega frio. Às vezes acontece os alunos irem até ao pátio onde, por ventura, poderá estar mais um ou dois graus, sobretudo ao sol.
Nós sabemos os para quês…, mas aí ficam duas perguntas nestes moldes:
Para quê tantas caganças e vaidades dos nossos governantes com a distribuição dos Magalhães, se há tantas escolas e tantas salas de aula por onde passeiam e habitam ratos e baratas, onde chove, entra vento, cheira mal, faz frio ou calor impróprios para se ensinar e aprender com gosto e dignidade?
Para quê tantas caganças e vaidades com o Magalhães, se falta aquecimento nas salas, se faltam vidros nas janelas, fechaduras nas portas, lâmpadas nos tectos, apagadores nos quadros e papel higiénico nas casas de banho?
Apetece-me dizer “Vanitas vanitatum, et omnia vanitas”.
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” é uma frase que, na Idade Média, aparecia escrita à entrada de misericórdias e de cemitérios. Por acaso, ou não, o pedaço de edifício mais antigo que subsiste de pé em Setúbal tem essa inscrição. Trata-se do Portal da Gafaria (hospital de leprosos) datado do séc. XIV.
Será que é a sina de tantos de nós vivermos e trabalharmos (e morrermos) enleados nas teias de vaidades dos governantes e poderosos?”
António Moura Galrinho, Professor da Escola Secundária de Sebastião da Gama (Setúbal)