“Tornou-se um falso dado adquirido na coreografia retórica em torno do défice, do aumento da despesa pública e daqueles a quem é útil apontar o dedo como causa da desgraça fabricada por incompetente governação. Embora o valor possa ter tido origem na máquina comunicacional do governo, rapidamente foi adoptado como bom por ‘experts’ da oposição para fazer passar a mensagem: o acordo entre o Ministério da Educação e os sindicatos de professores foi desastroso para as finanças públicas porque acarretou um encargo adicional de 400 milhões de euros.
A falsidade é de tal maneira evidente, e desmontá-la é tão óbvio, que é trágico como consegue continuar a ser reproduzida, desde gente que demonstra a sua incapacidade técnica ou então a sua extrema credulidade, isto para não falar em outros casos que já raiam o foro do delírio patológico. Comecemos pelos números.
De acordo com os números mais recentes, existirão cerca de 115 000 professores nos quadros do ME. Segundo quem diz que sabe, o acordo feito em Janeiro (atenção que o acordo foi para o ECD, nem sequer foi directamente sobre o modelo de avaliação, sendo que a estrutura da carreira impede progressões automáticas em dois níveis) teria implicado o tal encargo suplementar de 400 milhões de euros. Não vou prender-me sequer com a demonstração, ao nível micro, da falsidade da alegada progressão automática de todos os docentes. Vou apenas pela tentativa de desmontagem dos números. Mesmo que todos os professores tivessem progredido em função do acordo - o que já de si é totalmente falso -, cada professor teria direito a receber mais 3500 euros este ano, o que implicaria um acréscimo bruto de 250 euros mensais. Consultando qualquer tabela salarial percebe-se que a maioria das transições acontece abaixo dos 200 euros e algumas rondam apenas os 100 euros ilíquidos. Logo, gostaria de saber que contas foram feitas, pois a generalidade dos professores que subiram de escalão o fez por ter completado mais do que o tempo suficiente para transitar e outros que ainda nem progrediram, sendo que isso já estava previsto no OE para 2010.
Mas há ainda a cronologia. E essa ainda é mais gritante na forma como desmente o que é afirmado. O acordo ME/sindicatos foi assinado em Janeiro de 2010. Quando PS e PSD acordaram o pacote de austeridade em Maio já se sabia qual o efeito desse acordo, que directamente era quase irrelevante, pois, como referi atrás, as progressões em virtude da avaliação de 2007-09 já estavam previstas no OE e as decorrentes da apreciação curricular intermédia são uma minoria. Logo, qualquer derrapagem entre Maio e Setembro não pode ser assacada a qualquer acordo com os professores, mas a uma de duas hipóteses principais: mistificação voluntária dos números em Maio ou pura incompetência técnica da equipa das Finanças. É como a história dos submarinos... já se sabe há muito o que custam. Qualquer derrapagem da despesa pública desde Maio, cuja origem o Governo não desvenda, não pode de modo algum ser atirada para as costas largas dos professores, por ser absolutamente inverosímil. Que o Governo, o maior partido da oposição e a miríade de opinadores e especialistas-satélite se prestem a repetir essa falsidade em público é uma absoluta vergonha.
O que está em causa é que desde final de 2009, quando o PSD apoiou o Governo na não suspensão do modelo de avaliação, as progressões suspensas desde 2005 tinham de ser desbloqueadas para os professores avaliados e em condições há muito para progredir. E isso é anterior a qualquer acordo. Era bom que todos, sindicatos incluídos, o declarassem, a bem da verdade dos factos.”
Paulo Guinote, Professor do 2.º CEB, Doutorado em História da Educação, no “Público” da passada terça-feira