“1. A actividade governativa seria consideravelmente mais simples se dar um nome a uma coisa lhe ligasse irreversivelmente um estatuto. Os nossos governantes parecem especialmente atreitos a acreditar nesse nominalismo: plantam-se aero-geradores a esmo - e isso é uma "revolução energética"; resolve-se aspergir as escolas com computadores de brincar - e isso é um "choque tecnológico"; distribuem-se diplomas a eito a quem os queira - e isso é "requalificação profissional". O problema é que os juristas - esses escolastas impenitentes - tendem a persistir em separar o nome da coisa.
Quando algum dos membros da confraria lhe chamava a atenção para a diferença entre o que ele queria e o que ele podia, J. P. Morgan, o arqui-magnata americano dos princípios do Século XX, dizia que não precisava de advogados para lhe dizerem o que não podia fazer. Só precisava deles para lhe dizerem como fazer o que queria fazer. Apesar dos milhões de euros pagos em consultadoria jurídica pelo actual Governo, parece que os seus advogados não lhe servem nem para uma coisa nem outra.
A anunciada redução salarial no sector público é mais uma das medidas voluntaristas e mal concebidas que - das férias judiciais à avaliação dos professores, da localização do aeroporto à cobrança de portagens nas SCUT - se tornaram a imagem de marca dos Governos do Eng. Sócrates e que hão-de ser corrigidas no meio da maior das confusões.
2. Assim de repente ocorrem-me pelo menos três problemas jurídicos com a redução de vencimentos da função pública (rectius: dos trabalhadores com relação jurídica de emprego público; não, rectius, dos que a tenham ou não, mas estejam ligados a uma espécie de sector público).
2.1. O primeiro problema é logo o dessas suas fronteiras: uma redução remuneratória dos titulares de cargos políticos ou de livre nomeação, dos trabalhadores dependentes ou independentes da Administração central, regional e local, e do sector empresarial estadual, regional ou local, bem como do pessoal em situação de reserva, pré-aposentação e disponibilidade, tal como identificadas nas 21 alíneas do n.º 9 do artigo 17º da proposta de Lei do OE não existe como tipo jurídico. Não é uma categoria homogénea, é um exercício de arbitrariedade.
Até porque vem ao arrepio de uma anterior opção desses mesmos governantes: ao distinguir o estatuto jurídico dos trabalhadores com vínculo à função pública (os nomeados) dos que estão sujeitos a contratos de trabalho em funções públicas, pretenderam eles sujeitar uma parte dos trabalhadores do Estado ao mesmo regime laboral que vale para o sector privado.
Ora, se em relação aos trabalhadores deste se reconheceu que o poder ablativo do Estado estava impedido de interferir na sua folha remuneratória, então viola os princípios da confiança e da boa fé estendê-lo aos trabalhadores a quem foi imposto esse mesmo regime para o serviço do Estado - ao menos sem destruir o sentido dessa diferenciação de regimes na actividade pública.
Ora, a Constituição - que, para o mal e para o bem, ainda temos - consagra um princípio de protecção de confiança, um princípio de igualdade e, consequentemente, uma proibição de exercícios arbitrários do poder, sobretudo do poder ablativo. A anunciada redução de remunerações há-de ser julgada violadora desses princípios e, certamente, também do princípio da proporcionalidade.
2.2. O segundo problema é o da fundamentação dessa redução discricionária de remunerações. O traço comum entre as diferentes categorias de trabalhadores expropriados pelo Orçamento do Estado é, mais ou menos, o da entidade patronal: os contornos da redução seguiriam, então, grosso modo, os contornos do que se entendeu consolidar como o Estado central, regional e local - mas que difere, por exemplo, do perímetro de jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas, que é relevante justamente para esse propósito. Não teríamos resolvido o problema antes apontado, porque a natureza da entidade pagadora é o que menos releva para a situação de quem sofre a intervenção ablativa, mas teríamos um princípio ordenador do saque ao rendimento dos trabalhadores.
Um princípio arbitrário, ainda, porque não incide sobre outros pagamentos feitos pelo Estado - as rendas que paga, por exemplo. O principal problema aqui é que a primeira propriedade de cada pessoa é o seu trabalho, e a Constituição veda que alguém seja expropriado da sua propriedade sem justa indemnização.
Um corte de 3, 5 ou 10% do montante remuneratório auferido é uma expropriação de 3, 5 ou 10% de trabalho - passa a ser 3, 5, ou 10% de trabalho não pago.
O que o Estado confessa, então, como entidade pagadora, é que pretende obrigar o universo dos que para si trabalham (rectius: o que convencionou ser tal universo, diferentemente do que considera ser tal universo para efeitos de visto prévio do Tribunal de Contas) a trabalhar o mesmo e a receber menos, em seu benefício. Invoca, claro, situações excepcionais e dificuldades financeiras (que, inexplicavelmente, não servem, porém, para cortar na mesma medida outros pagamentos contratuais).
Como tais situações excepcionais ou dificuldades financeiras não podem ser invocadas por entidades privadas, viola-se um outro princípio de igualdade - desta feita não entre os sujeitos passivos, mas entre os sujeitos activos da relação laboral (pública ou privada).
A distorção assim introduzida no funcionamento do mercado equivale a um subsídio às sociedades detidas pelo Estado (na medida em que diminui os seus custos de funcionamento em concorrência com outras do sector privado) - ou seja, equivale a uma ajuda de Estado, e é passível de apreciação pela União Europeia.
2.3. O terceiro problema - e o mais grave - é o da verdadeira natureza da actividade ablativa do Estado - uma actividade que é da natureza da própria essência da Constituição sujeitar aos seus limites. Ora, substancialmente, o que está em causa na redução remuneratória é um verdadeiro imposto. A doutrina define imposto como uma "prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado ou por outros entes públicos, com vista à realização de fins públicos" - e não há um só dos elementos definidores dos impostos que falhe na eufemísticamente designada "redução remuneratória do sector público".
Como se sabe - ou, pelo menos, sabem os juristas que não aconselham o Governo - não chega chamar "taxa", ou "tarifa", ou "emolumento", ou "direito nivelador", ou "corte nos vencimentos", ou outra coisa qualquer, a um tributo, para o isentar da aferição com os princípios constitucionais que regem o lançamento dos impostos. O próprio serviço militar obrigatório só não era abrangido no quadro destes por não ser aí exigida aos cidadãos uma prestação pecuniária. Ora, vistos os cortes remuneratórios a esta luz - e é a ela que juridicamente deve ser vista - são violados, pelo menos:
- o princípio constitucional da igualdade (não há razão para que as despesas do Estado sejam preferencialmente sustentadas pelos que para ele trabalham e, demais, o facto tributário eleito - a natureza da entidade pagadora - para a determinação do rendimento que vai servir como matéria colectável é duplamente arbitrário [por incidir apenas nas remunerações laborais, e por, nestas, incidir apenas sobre as que são, ou foram, prestadas a entidades, em última instância, públicas] - tanto mais que, se a conversão dessa ablação discriminatória [cerca de 800 milhões de euros] fosse repartida pelos titulares de rendimentos comparáveis, o montante a pagar por cada um seria consideravelmente diminuído);
- o princípio constitucional do tratamento fiscal mais favorável dos rendimentos do trabalho (a haver necessidade de mais receitas fiscais elas deviam incidir preferencialmente sobre outras categorias de rendimentos);
- o princípio constitucional da protecção da confiança (um dos princípios básicos de um Estado de Direito é o do não retrocesso social, há expectativas objectivas de que a carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho não seja disfarçada de medidas de natureza diversa, e, se é certo que não pode haver expectativas quanto ao nível da carga fiscal - excepto na sua distribuição equitativa - há decerto expectativas subjectivas fundadas quanto ao nível remuneratório já obtido, como o Tribunal Constitucional declarou num caso em que o que estava em causa era muito menos grave - o decidido por unanimidade no Acórdão n.º 141/2002);
- o princípio constitucional da unicidade do imposto sobre o rendimento pessoal e da teleologia desse imposto (ao fazer sobrepor um imposto especial sobre o rendimento ao IRS, e ao desconsiderar as necessidades do agregado familiar dos contribuintes, a projectada redução viola flagrantemente o disposto no artigo 104º da Constituição).
3. Se os portugueses se convencerem finalmente de que não são meros súbditos da prepotência do Estado e se ainda acreditarem que Portugal é um Estado de Direito, os tribunais serão soterrados com processos para impugnar esses mal disfarçados e mal concebidos impostos.
Mas para que se não diga que é minha intenção dificultar a actividade governativa, dou já a sugestão que um advogado daria ao Sr. Morgan para resolver o problema: proíbam o acesso aos tribunais para discutir esta questão - ou, se quiserem fazer de conta que não é isso que está em causa, aumentem exponencialmente as custas destes processos e cobrem-nas à cabeça.
Ou, melhor ainda (já que também isso seria inconstitucional) encham-nos rapidamente de boys (M/F) que digam que Direito é o que a Assembleia da República decide.”
Victor Calvete, Assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, no “Expresso” de 24 de Novembro